quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

OS TRÊS REIS

Crônica de Dom Marcos Barbosa, OSB.
(14 de janeiro de 1952)

Chegaram os três, caro ouvinte, um depois do outro, no próprio dia dos Reis. Vinham de terras mais distantes que os Magos do Oriente: vinham das terras do Nada. E nada era também o que  traziam: nem ouro, nem incenso, nem mirra, - mas três boquinhas ávidas, para somarem-se às quatro que Salvador João de Deus Alfa vinha sustentando até então*.
Terá sido o nome tão cheio de Natal: Salvador João de Deus? Terá sido o sobrenome de estrela: João de Deus Alfa?
O certo é que um ou outro atraíram, para o lar operário, os três pequenos reis sem coroa, sem manto, sem presentes, - tão diferentes dos três reis da terra, mas tão iguaizinhos, todos, ao rei do céu entre palhas...
João de Deus não se afligiu. (Quantos não se terão afligido por ele?) Apenas disse umas palavras que vieram num cantinho do jornal, mas que os anjos, em letras cintilantes, terão gravado no céu: “Se Deus me mandou três filhos de uma vez, naturalmente me ajudará a criá-los”.
Estamos no Século da Criança dizem. No entanto, elas jamais foram, talvez, tão odiadas no mundo. Vivemos sob o signo de Herodes. Mesmo aqueles que não matam as crianças antes de virem à luz, mesmo aqueles que não se deixam cativar pelo intruso que a contragosto lhes nasce, mesmo aqueles que tem até vários filhos, - todos levantaram contra a criança o seu grito de guerra, - pela educação que lhe dão, pelo modo que a ela se referem, pelo clima que a seu respeito toleram...
“Nós faremos uma tal revolução – diz um personagem de Dostoievsky – que tudo será destruído pela base. Eu já disse que penetraremos até o povo. Não percebeste acaso como já estamos fortes, extraordinariamente fortes? Nossos partidários não são apenas os que enforcam, os que dão tiro, os que ateiam fogo às casas... Esses, até nos atrapalham! Os verdadeiros aliados, cataloguei-os todos. O professor que se ri, com os alunos, do seu Deus e do seu berço, é dos nossos. Os jurados que absolvem o criminoso confesso, são dos nossos. Os estudantes que matam um camponês para sentir sensações, são dos nossos também... Quanto aos homens do governo ou das letras, muitos, muitos mesmo, trabalham para nós, sem que eles próprios suspeitem”.
E não poderíamos acrescentar, ouvinte, outros colaboradores da revolução que pretende aniquilar a terra? Não; não nos referimos aos pais que matam os filhos ou às mulheres que matam os maridos. Esses, até nos atrapalham: far-nos-ão, talvez parar no meio do caminho!
Os membros eficientes são outros. É a mãe de família que deixa a revista “O Cruzeiro” entrar na sua casa. É o pai de família que vai se distrair com peças de teatro cujos nomes não posso sequer pronunciar. É a mocinha que exclama, zelosamente prostituída pela mãe, pelas tidas ou pela avó: “Deus me livre de filhos!”
Por isso é que é um consolo, um conforto, uma esperança, ouvirmos às vezes certas frases como as que aqui tenho registrado, e que provam que o mundo não está de todo perdido. Frases como a do homem do Pão de Açúcar: “Minhas luvas são os meus calos”. Frases como a do meu amigo cedo: “Minhas filhas são o lado claro da minha vida”. Frases, enfim, como a de Salvador João de Deus: “Se Deus me mandou três filhos de uma vez, naturalmente me ajudará a criá-los”.
Charles Péguy nos descreve como ele próprio um dia entregou seus três filhos à doce Virgem de Chartres:
“Como alguém toma três crianças no chão
e as põe ao mesmo tempo
juntas, todas as três,
nos braços de sua mãe e de sua ama que ri
e reclama que lhe puseram demais no colo,
que não terá força para carregá-las,
assim, tomara, ousado pela oração, seus três filhos,
da miséria e da doença em que jaziam,
e os colocara tranquilamente nos braços daquela
que carrega todas as dores do mundo.
(Pois se o Filho tomou todos os pecados,
Tomou a Mãe todas as dores.)
“Tomai. Eu vo-los dou. Fazei deles o que quiserdes”;
E foi-se embora, o esperto, de mãos abanando...”.

Salvador João de Deus Alfa foi também um espero. Com sua frase simples e modesta, entregou seus três filhos não à Virgem apenas, mas diretamente a Deus. Não têm os dois o mesmo nome? “Se Deus me mandou três filhos de uma vez, naturalmente me ajudará a criá-los”.
E Deus ficou sendo o responsável, o pai, nesse momento, dos três filhos de João de Deus.

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* Notícia publicada no “Correio da Manhã” de 13 de janeiro do ano passado na sessão “Frases da Semana”

Publicado na Revista A Ordem, Vol. XLIX, Janeiro de 1953, n. 1, p. 62-63.


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