Estamos em véspera de
Natal. O movimento das ruas dobrou; triplicou.
Os automóveis buzinam, imobilizados nas esquinas entupidas; as lojas
regurgitam; os vendedores não têm mãos a medir; e as pessoas, os clientes,
entram, saem, escolhem, regateiam, comprimem-se, acotovelam-se, mas sorriem,
sim, sorriem - porque parece que todo o mundo está muito contente.
Todo o mundo, menos o
velho Scrooge. O amargo e triste usurário só pensa em si mesmo, e não lhe
sobram ouvidos para as vozes cordiais que cruzam os ares com votos de Natal
venturoso. Christmas! Merry, merry Christmas!
Passa o funcionário letra
O, o funcionário letra N, o funcionário letra M; e passam as esposas, as virtuosíssimos
esposas dos funcionários, cada uma com sua alegria embrulhada num papel
sarapintado de sinos e velas. Boas festas! Boas festas! Todo o mundo está
alegre. Todo o mundo parece ter na alma
hinos e luzes.
Todo o mundo, menos o
velho Scrooge, que vê com olho mau e oblíquo essa inconveniente profusão de
gastos inúteis.
As mães se cruzam com as
mães; tias esbarram em tias. Anda no ar
um milhão de cálculos secretos envolvendo bonecas, espingardas e triciclos. E o
cálculo mitiga o júbilo. As mães do padrão M param pensativas nas portas das
casas de brinquedos; e ali na porta fazem-se mais densos cálculos, as cifras,
as suputações, as somas, as subtrações.
A espingarda então encolhe e vira revólver de rolha; ou diminui ainda
mais e se reduz a um engenhoso brinquedo de matéria plástica, que só funciona
bem, como ficará provado mais tarde, nas mãos habilidosas dos vendedores. Os
sonhos, tratados com o reagente das cifras, dão um precipitado cor de
cinza. Os vendedores embrulham em papéis
sarapintados a espingarda que virou matéria plástica. Embrulham decepções. Caixa! Caixa! Caixa! O
triciclo fica para o ano que vem, quando vier o aumento. Aliás, Toninho ainda é pequeno para o triciclo.
E o vendedor embrulha aquilo em que se transformou o triciclo. Caixa! Caixa!
Mamãe, olha ali, que amor de boneca! E a mãe puxa a menina padrão M que deseja
a boneca padrão O. Caixa!
O brinquedo resultante da
judiciosa combinação entre um sonho e um orçamento vai agora escondido no
embrulho; e a mãe M, longe dos outros brinquedos da loja, que doem pela
comparação, reata o fio do sonho.
Raciocina para reconquistar a pureza do sonho. Toninho vai gostar,
Toninho vai ficar radiante.
Passam embrulhos;
embrulhos levando pessoas pelo dedo. Vejam! Apareceu no sangue da cidade essa
acúmulo de células imaturas. Onde está a
espingarda? onde está o tricilo? Viraram mieloblastos, detritos de sonhos,
jovens, bastões, segmentados. Façam o
exame de sangue da cidade!! E eu quero ver o jogo fisionômico do dr. Aquiles
quando abrir o papel.
Boas festas, dr.
Aquiles! Merry, merry Christmas! Todo o
mundo está contente. A mãe de Toninho, a
múltipla mãe do coletivo Toninho, que mora em Copacabana, em Itapiru, em Jacarepaguá,
divide-se, ramifica-se, decompõe-se numa densa multidão de dorsos femininos. Os
bondes passam cheios de pernas, pernas letra M, pernas letra N, e os festivos
mieloblastos embrulhados com sinos e velas entram a circular pela cidade. Todo
o mundo está contente, menos o velho Scrooge.
Mas será mesmo verdade, ó
amável Dickens, que todo o mundo esteja contente? E a espingarda que virou celulóide? E o
triciclo que ficou para o ano que vem? Embora antipático, quem tem razão é o
velho Scrooge. Embora mesquinho, ele ao menos compreende uma coisa de capital
importância: que é muito difícil dar. É
a última coisa que se aprende; e é a primeira que se exige para um mundo
habitável. E é por isso que eu vejo com melancolia essa procissão de equívocos
embrulhados. Quem terá o coração tão
duro que dê uma pedra ao filho que pediu um peixe? Mas a dificuldade se resolve
desde que se embrulhe a pedra em papéis festivos; e as mães letras L, M, N,
conseguem convencer-se de que a pedra é uma nova espécie de peixe. E é isso que dói, e como dói! A alegria falsificada,
a alegria que virou matéria plástica.
Não digo que seja
impossível uma alegria verdadeira, uma alegria de criança, com um brinquedo
truncado e pobre. Não. É claro que uma alegria de criança pode nascer à toa; é
claro que um pedaço desconjuntado de celulóide pode fazer feliz uma criança; é
claríssimo que ainda não conseguiram secar, por mais que o tentem, as fontes
vivas da infância, as riquezas de um coração menino que com pouco se
contenta. Não. Continuem assim, por séculos e séculos, a
enganar as crianças e os pobres. Sempre
haverá pobres; sempre haverá crianças. Mas não é isso que mais me aflige. É
também evidente que escolheram o dia do nascimento de Jesus para infligir uma
festiva humilhação à pobreza. Basta pensar no Natal dos Pobres. As ruas se enchem de miseráveis em filas nos
portões dos palácios. Se chove, fica
ainda mais perfeito o espetáculo. Mas não é isso, ó Dickens, que mais me dói.
O que me dói é a
falsificação, é o espírito de praxe que preside as tristes festividades dos homens.
É dia de dar. A folhinha marcou o dia de
comprar presentes. A vizinha da direita comprou, a vizinha da esquerda comprou.
Eu preciso comprar. É praxe. É uso. É costume. E todo o mundo fica contente de
entrar na equação de um uso, de um costume. Da praxe. Todo o mundo, menos o antipático Scrooge.
Que Natal é esse que
acentua as injustiças, que exaspera as paixões, que alarga os equívocos?
Admitamos a festa da cidade, do país, do gênero humano. Admitamos a celebração de algum feito que a
todos interesse. Admitamos que depois de
amanhã o mundo se lembre da natividade do Salvador, que nasce de uma Virgem, na
gruta de Belém, porque não havia lugar para eles nas hospedarias. Mas nesta
hipótese, meu caro Dickens, eu exijo, em nome da mesma lógica que me mata, que
a alegria seja de uma outra ordem, e que não dependa assim, em primeira linha,
dos cálculos e dos orçamentos. Há
alegria e alegria; há graus de alegria; espécies de alegria: desde a cócega no
pé da criança até a paz que nasce de uma concórdia perfeita; desde a
estrepitosa bomba cabeça-de-negro até a gratidão silenciosa que desabrocha na
quietude das almas.
Exijo uma outra alegria,
apoiada sem dúvida nas coisas visíveis, no celulóide se quiserem, porque os
homens vivem de sinais visíveis. Mas apoiada
de leve, como convém às coisas do puro amor.
Não é assim que fazem os namorados quando guardam pequeninas
lembranças? Não seria melhor dar de
presente pétalas de rosas, leves pétalas, levíssimos hóstias de amizade
perfeita?
Chamou-me a atenção o diálogo
travado à porta de uma casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e
autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já dava mostras de
impaciência. Passando de um para outro,
ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas e cheias de anéis da
abastada freguesa, uma bonequinha preta de olho arregalado, e com uma cestinha
de bananas na cabeça, parecia alheia à discussão:
- É muito cara.
- Foi remarcada, madame.
A senhora não encontrará uma boneca destas por menos de cem cruzeiros... Mas se a senhora quiser temos outras bonecas
mais baratas. Qual é o seu orçamento,
madame?
A dama de azul franziu
ligeiramente os sobrolhos.
- É para uma menina
pobre. A filha da empregada.
Ela não podia,
evidentemente, marcar em cem cruzeiros o limite de "seu orçamento"
como queria o desajeitado vendedor; assim, dizendo que era para uma menina
pobre, explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para sobrinha
dela, para alguma criança de sua espécie, dela; de sua qualidade, de sua classe,
de sua condição: era para a filha da criada.
O vendedor compreendeu
logo que o problema se deslocava para um novo sistema de micro-unidades.
Ninguém, evidentemente, mede em quilômetros o diâmetro de um glóbulo de sangue,
nem mede em milímetros a distância de Sírius.
Há o mícron para o glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas dimensões, suas escalas
adequadas, neste harmonioso universo.
Enquanto o novo sistema
de unidades se estabelecia entre o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na
vitrina um urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos parados de
contas azuis.
- Urso, amigo urso,
diga-me, por favor, onde é que esconderam o menino Jesus?
O menino Jesus estava na
esquina de Assembléia com Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém
desconfiava. As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas) não viam o menino
Jesus instalado no seu nicho de miséria. E tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre. Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que
a mendiga o tirara de uma lata de despejo.
Quando eu passei, ele
tentava pegar a chupeta caída nos trapos sujos da mãe. Levava-a à boca, sem
jeito, metendo os dedinhos nos lábios, de onde corria uma saliva clara e
inocente. A mãe, de braço estendido, pedia uma esmola pelo amor de Deus. Seria
mãe de verdade? Dizem que se alugam
crianças para mendigar. A mendiga é falsa. A criança é falsa. A mãe é falsa. E
dessa falsidade todo o mundo desconfia.
A chupeta caía de novo e
perdia-se no seio miserável. Nesse
momento, quando eu já me afastava, o menino olhou para mim. Seus olhos pousaram
em meus olhos. Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E o menino
sorriu. Para mim!
*****
Gustavo CORÇÃO. Lições de Abismo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1958, p.
183-190.
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