Augusto
Frederico Schmidt
Uma
voz se levanta de repente,
Voz
misteriosa e criadora,
Forma
do próprio Espírito infinito
E
ante essa voz, que vem do Tempo Eterno
Um
mundo já perdido, na distância
Se
liberta de súbito, e aparece
Próximo
ao nosso olhar.
Próximo
e esplendido
Na
sua luminosa suavidade
***
E
a voz é o próprio pensamento
Tocado
pela graça
E
a voz é a revelação
Do
mundo redimido da miséria.
Do
mundo onde não vinga a lei do Tempo.
Mundo
em que as flores são eternas
Eternos
os seus frutos
E
as águas suas sempre vivas.
Mundo
virginal, fecundo e inalterável.
***
No
princípio era a Voz que nascia
E
com a voz o Puro Pensamento,
E
os clarões em que a Suprema Inteligência
Configurava
o Destino insoldável dos seres.
No
princípio era a Voz
Do
abismo originária
E
eco de uma outra voz – Filha do Verbo
Ordenador
dos ritmos eternos
Fonte
da Vida, fonte da Consciência
Fonte
da Salvação e Eternidade.
***
No
princípio era a Voz
E
a voz surgindo, procurou a Vida
E
a vida estava nas Estrelas do Céu
E
na Estrela que anunciou aos tímidos pastores
O
Incrível Acontecimento.
E
a Voz se aproximou das simples coisas
Até
onde se estendia a Graça eterna.
E
a voz – recebeu os sons e os ruídos
Do
Mundo,
Os
risos das raparigas nos folguedos
O
balir das ovelhas,
O
mugido dos bois pacíficos e ungidos pela bondade rudimentar.
E
a voz se uniu e recebeu o canto da pequena cidade
Como
o mar recebe no seu seio fundo
As
águas confusas e transidas do mundo.
***
E
a Voz era o anúncio da vinda
Do
que era o Equilíbrio e a Salvação
Entre
as leis da Morte e do Desespero.
E
a Voz era o sinal de que o Filho do Homem
Estendera
para o futuro do mundo
As
mãos e os pés para o castigo infamante.
E
a voz, que era a Própria Vida, se transformou em música!
***
E
vem do fundo misterioso da Noite de Natal,
Do
fundo da longa noite lúcida e estranha de Natal
A
grande música.
***
São
sinos que tocam nas brumas invisíveis
São
harpas que as asas dos Anjos fazem tremer
São
soluções de crianças
São
dores gloriosas
São
bênçãos paternas cheias de frutos.
***
E
vem do fundo sem termo da Noite de Natal
A
música da transfiguração
E
a música realiza o mistério
O
mistério da Contemplação.
***
A
hora é noturna.
O
crepúsculo á fugiu há muito com as suas longas asas
E
os braços da noite desceram silenciosamente sobre a terra.
****
Há
uma candeia que o vento ao longe balança.
Há
uma luz que tremula indecisa nos limites das trevas.
Há
uma luz que resiste aos ventos e que resiste às chuvas.
***
A
noite é cheia de Graça!
A
noite é cheia de Harmonia!
****
Ó!
Música do Céu e da terra dai-nos de novo, um instante ainda a contemplação do
Acontecimento!
Dai-nos
de novo, não emoção do Milagre
Não
a poesia distante do símbolo
Não
a pálida flor da nossa imaginação maravilhada.
Ó!
Música nascida do Natal,
Dai-nos
a Face, a nua e simples Face do Acontecimento.
Queremos
ver tudo como tudo se realizou
Queremos
ver de novo as pobres mãos de Maria
As
pobres mãos brancas e castigadas das lides domésticas
Mãos
maternas e pobres escurecidas pelo frio e o desconforto.
Queremos
o olhar indizível do Lírio que o Eterno fecundou e fez frutificar.
***
Ó!
Música, condutora da mão que escreve estas humílimas palavras.
Dai-nos
a realidade incomparável
Dai-nos
o choro inocente do Menino
Dai-nos
as desconhecidas fisionomias dos Magos,
Dai-nos
a visão maravilhosa da Estrela indicadora
Com
a sua cauda e o seu brilho.
Dai-nos
de novo, ó! Música, a atmosfera que
envolveu os personagens do Acontecimento.
***
Queremos
as pobres e improvisadas cobertas
Os
abrigos humildes que defenderam do inverno
O
corpo intocado da Esposa do Eterno.
Queremos
os objetos, as coisas mais pobres
A
bilha de água das viagens ásperas,
As
alpercatas de José, grande e doce José,
Tão
natural e tão heroico na sua confiança e na sua pureza.
Queremos
o bafo generoso dos bois que participaram da Hora Divina
Queremos
o que se realizou, nos seus mais ínfimos detalhes.
Queremos
a própria identidade de um viajante noturno
Que
atravessou ingenuamente Belém adormecida
Que
passou arrastando o bordão nas estradas
Em
frente aos portais do estábulo
Na
ora em que se encarnava o Unigênito
O
Filho do Deus dos Desertos; do Deus Ordenador do Caos e iluminador dos Espaços.
***
A
realidade do Natal, nós te pedimos ó! Música do Cristo Menino
A
realidade nua, nós te pedimos para iluminar este mundo escuro
Ó!
Momento do Milagre de Amor e do Sacrifício de Deus!
A
realidade do instante em que o Acontecimento se verificou, nós te pedimos
Para
que a Alegria e a Esperança de novo
Renovam
o ar irrespirável que as nossas gerações hoje recebem
As
nossas gerações distanciadas do Natal, como se tivessem chegado
Nas
horas confusas do Velho Mundo, do Mundo sem redenção ainda preso ao pecado
original como a terra às leis do Sol.
***
Natal!
Natal!
Do
fundo da Noite Primeira do Cristo – chega a Poesia redentora.
E
do fundo do Tempo, que a estranha Presença libertou da Morte
Nos
vem, ampla e profunda, a música perturbadora.
E
com a música a cena – distante e intata.
***
Vamos
ouvir e vamos olhar o povo de Israel, um instante
O
inquieto e ansioso povo Escolhido, escolhido para o Sofrimento e para a Gloria.
Vamos
ouvir e vamos olhar o povo incomparável
De
onde nasceu a Negação e a Blasfêmia.
Vamos
ouvir e vamos olhar o Povo Escolhido
O
povo que não quis o Deus que os outros povos reconheceram e adoraram.
Vamos
contemplar a imensa e triste arvore de David
Cheia
de frutos estranhos, mas curvada para a morte.
A
árvore enorme, mas habitada pelas desgraças.
Com
as suas longas raízes bebendo os venenos ignorados de um rio subterrâneo e sem
nome.
Vamos
contemplar, a Face do Povo Judeu
E
as fisionomias morenas e trágicas dos seus filhos
Vamos
verificar a miséria da raça perseguida
Na
hora em que Deus a visitou na Pessoa do seu Filho,
Do
Cristo, concebido sem pecado de Maria.
Vamos
olhar e vamos sentir a desgraça de Israel
Na
hora última, no instante da escravidão
Quando
o jugo estrangeiro já não provocava mais revoltas.
E
o Messias era uma esperança inútil e sem desejo.
Vamos
olhar os Filhos da Raça Eleita
Últimas
espigas, espigas abandonadas que Ruth não recolheria da seara de Booz
Sinais
apenas do grande trigal humano,
Da
Raça que sofreu o Amor de Deus em toda a sua violência.
E
que Deus premiou fazendo-se dessa mesma Raça!
Dessa
Raça triste e que habita no erro ainda hoje
E
até o momento, em que a Misericórdia imperativa o consentir.
***
Natal!
Os sinos romanos, somente muito depois traduziriam.
A
tua incrível poesia para o nosso entendimento!
Natal!
Ó! Sinos do futuro, tão silenciosos ainda!
Eu
vos ouço vibrar, sobre a pobreza do Presépio.
Ó!
Sinos da Roma Vencida sinos ainda invisíveis.
Sinos
em torres de Igrejas não construídas
Eu
vos ouço, sonoros, cantando e abençoando
A
pobre noite de Belém
A
humilde noite de Belém.
A
nua e tocante cena do nascimento do Filho dos viajantes sem pouso.
Sinos
de ouro, sinos de bronze, velhos sinos
Sinos
que iluminais as noites dos séculos
Sinos
que desceis límpidos aos corações poluídos e sombrios.
Sinos
da Igreja invencível
Eu
vos estou ouvindo, vibrantes dentro da noite gloriosa
Em
que as formas humanas, as pobres formas humanas,
As
pobres formas de um menino frágil contiveram o próprio
Verbo
que era levado sobre as águas nos dias primeiros.
***
Não
direi, não conseguirei jamais dizer, com as minhas palavras
Como
desejaria ardentemente, o Acontecimento do Natal.
Para
falar dele, somente as simples expressões
As
simples expressões de Marcos, de Mateus e de Lucas, são próprias
E
nem João, porque, o próprio João era o Fogo, e o Espírito Puro.
E
os outros, apenas, narradores da verdade, naturais e diretos
Assim,
não conseguirei amais falar do lar improvisado de José.
E
da sua pobreza completa.
Porque
o Milagre, a consciência e o conhecimento do Milagre
Alvoroçam
a minha imaginação e a conduzem para o delírio.
Ao
desejo de evocar o Natal no seu quadro doméstico
Sinto
o tumulto, a grandiosidade, a sonoridade e o clarão do Mistério magnifico.
E
os olhos cheios de susto
Vem
os pastores acordados pelos Anjos
E
vem Herodes pedindo aos Magos a confirmação e o sinal do Messias.
E
vêm nos céus da humílima Belém,
O
Espírito Santo.
***
Cristo
nasceu! Nasceu o Messias, o Esperado e o Prometido
Na
hora da perseguição, na hora da humilhação da Raça.
Na
hora da hipocrisia, na hora de Pilatos, na hora da estupidez e da covardia,
quando o Reino de Israel era uma sombra distante e impossível.
Na
hora vil, entre todas as horas do povo judeu.
Na
hora da adulação ao terrível Senhor do Império.
Na
hora da frouxidão e da sombra.
Na
hora da última queda, da descida ao chão de um povo que foi o escolhido; de um
povo que teve um dia Moisés como condutor.
De
um povo que teve Salomão e David.
De
um povo que inspirou a poesia oleosa e trigueira do Cântico dos Cânticos
Com
a sua Rosa Vermelha, e os seus ciprestes balançados pelos ventos
Foi,
pois, na hora em que Judá se prostrava diante dos pés do César
Na
hora em que a poeira descera sobre a antiga nobreza.
Sobre
a raça altiva e dilacerada.
Foi
na hora da Morte
Que
o Menino chorou pela primeira vez com o seu pequeno corpo castigado pelo frio
deste mundo
E
então, Roma foi vencida
E
o sinal da Cruz surgiu diante das tropas guerreiras
E
Roma, plácida e sólida como um pomar na primavera,
E
Roma madura no seu espírito
E
harmoniosa nas suas formas, e a grande Roma que deu em Virgílio a medida, da
sua harmonia e da sua clara maturidade.
E
Roma, a Fecunda, campo de trigo sob os azuis céus abertos,
E
Roma, a solida, somente se prolongou na eternidade com a sua influência
decisiva e renovadora
E
adquiriu as substancias indispensáveis à vida, no mundo que ia nascer e que é o
nosso mundo
Isto
só porque recebeu e guardou as palavras, a máscara piedosa e magnifica e o
sangue
Do
Menino, que nasceu em Belém!
***
Natal!
Natal! Natal!...
Cantai
Anjos a Glória do Natal
Cantai
vozes em coro o Menino transido
Cantai
estrelas nos céus noturnos
Cantai
corações, em que a esperança revive e sempre se renova.
Cantai,
ó! Alma ainda intocadas
Cantai,
vozes maternas, vozes fecundas e enternecidas das criaturas que transmitiram a
Criação.
E
repetiram o sacrifício de Maria.
Cantai,
santos e pobres,
Cantai,
para acordar o mundo
Cantai
para lembrar ao mundo o Acontecimento
Cantai,
dentro da funda Noite, para defender a inocência
Cantai
sobre os campos de batalha,
Sobre
os ódios e as divisões destes tempos
Cantai
para que se avivem e inquietem as memórias.
Cantai
em defesa das crianças que estão nascendo nesta hora
Em
todas as partes do mundo.
***
Que
a Mensagem de Natal seja, nesta hora amarga,
Que
a poesia de Natal seja neste instante de agonia e de tristeza
Transmitida
com um heroísmo até aqui não conhecido.
Que
a Mensagem de Natal, que a música do Nascimento redentor chegue até onde domina
o silencio áspero dos Estados dos novos Césares
Que
a Mensagem do Natal chegue até onde o Cristo é negado à infância.
Até
onde a Face do Cristo é escondida às crianças,
Às
crianças que O procuram, no entanto, sem saber sequer que O procuram
E
que reconheceriam facilmente se O encontrassem,
Porque
se sentiriam compreendidas e amparadas
Com
a simples ação da sua presença incomparável.
***
Natal!
Natal!
Passos
perdidos na neve
Passos
nas matas, nas cidades, nos campos em flor,
Sinos
cantando o Natal
O
Natal dos deserdados
O
Natal dos solitários
O
Natal dos que estão lutando nas trincheiras
O
Natal dos que não aprenderam o nome do Cristo
O
Natal dos que não têm esperanças
O
Natal de todos os filhos destes tempos inquietos
O
Natal sem bênçãos e o Natal sem alegrias
O
Natal humílimo, e, o Natal da Hora da Agonia.
***
Descei
– ó! Poesia impossível e intraduzível do Natal
Sobre
a avidez e a insensibilidade desta hora incerta
Descei,
ó! Imagem nua do Cristo recém-vindo do ventre imaculado.
Descei,
ó! Espírito puríssimo do Natal.
Descei,
sobre os nossos corações e sobre as nossas tristes cabeças
Descei
como o sol quando desce sobre a terra
Descei
para dar-nos o Coração do Cristo, o Coração acolhedor e Insubstituível do
Cristo,
Sem
o qual o Mundo é escuro e não tem sentido
Sem
o qual a vida é a própria Morte
Sem
o qual não há esperança, nem alegria. Amém.
*****
In "A
Ordem", n. 87, janeiro de 1938, pp. 47-56.