Camilo Castelo Branco (1825-1890)*
Parte I
Na terra não há palavra que mais de
pronto incenda o espírito em pensamentos do céu.
PADRE, este ministério augusto, que
nunca se mancha das impurezas de quem mal o exerce, e parece refugiar-se no
seio de Deus, d’onde viera, como vínculo sagrado, entre os atributos divinos e
as fraquezas do homem.
A história do Padre é anterior a das
nações. A sua presença na sociedade é eterna como o princípio que representa: é
a religião personificada na majestade de sua missão.
Buscai-o no berço das gerações:
encontrá-lo-eis, como Melquisedech em Solém, chefe da raça, como Noé nas
montanhas da Armênia, ou sacrificador como Abel.
Quem é o Padre?
“Somos os auxiliares de Deus” –
responde S. Paulo.
É magnifica esta hierarquia definida
pelos lábios tímidos do apostolo! Será ela uma imagem oriental, uma hipérbole
do orador, uma impostura do aventureiro? Deus, que fecundara o universo no seio
do infinito por um ato incompreensível da sua vontade onipotente, precisaria do
verme da terra em seu auxilio? O padre, como assevera S. Paulo, será o auxiliar
de Deus?
É.
Quando o filho de Deus gotejou o
sangue da Redenção, a face do mundo, orvalhada por aquele sangue, devia ser, em
seus frutos novos, um monumento perpétuo da passagem de Cristo. Sobre as ruínas
desse imenso empório a corrupção, dessa vasta cidade pagã, que abrangia os
horizontes da terra, uma nova cidade era fundada. Com os alicerces na terra, e
as cúpulas no céu, a Jerusalém celeste carecia de operários, cujos suores
fossem bagas de sangue, e cujas recompensas houvessem de ser-lhes caucionadas
pelo tesouro das mercês divinas.
Os padres foram estes operários,
homens de trabalho, de lágrimas, de sangue, e de espírito ansioso por essas
recompensas de glória não compreendida na terra. As pedras desse edifício
celeste, desbastada pela palavra do sacerdote, e colocadas pela mão do ministro
de Deus, eram os homens, somos nós, serão nossos netos, será a última das
gerações.
“Nós somos os embaixadores de Cristo”
– acrescenta S. Paulo.
E há dezoito séculos que o são. O mais
profundo segredo do Senhor é o sacrifício do Calvário. Dos lábios do padre pode
o gênero humano colher a revelação possível desse augusto mistério. Há sobre a
terra um reino divino que pertence a Jesus Cristo, herdeiro de David.
Rei eterno, carecia de ministros
iniciados no seu plano. Foram-no estes homens, que passavam entre nós, filhos
de um século desvirtuado, e desvirtuador das missões que nos deslumbram o
entendimento, anulando-nos a razão, orgulhosa mesmo da sua fraqueza quando se
vê aniquilada.
Quereis avalia-los por um caráter que
os separa dos auxiliares, dos embaixadores dos reis da terra? Olhai para vós,
pequenos de hoje, que ainda ontem éreis grandes na república social. Olhai para
vós, que perdestes o caráter de um alto dignitário apenas o arremesso da
política vos depôs do patriciado, que considerastes vinculado à vossa astucia
ou ao vosso merecimento.
Olhai agora para a fronte do Padre, lá
vereis o sinal glorioso, que a mão do Eterno ali gravara há dezoito séculos!
Recordai as iras tempestuosas, que têm conspirado contra aquele distintivo
misterioso do embaixador de Deus; lembrai-vos do punhal revolucionário que
intentou achar no coração do sacerdote o sentimento exclusivo do espirito;
juntai à morte a perseguição, e a cólera dos agressores à paciente humildade
dos agredidos; mas o caráter indelével da sua soberania não lh’o vereis um
instante perigoso nas tormentas do desprezo que lhe votam e nas guerras
traiçoeiras que lhe fazem.
Há mil oitocentos anos, que o facho da
verdade eterna entre as mãos dos levitas ilumina o mistério daquelas palavras
do mestre: “Vós sois a luz do mundo”. E que mão impiedosa pode apagar os
vestígios de seus passos na mais inculta das nações, e na mais polida das
cidades modernas? As hordas errantes d’África, os selvagens da Oceania
escutaram-lhes as palavras de vida, que hoje ressoam nos templos de Paris
vibradas pelos lábios inspirados de Ravignan,
Ventura, e Lacordaire. Que maravilhosa consonância de vozes! Que caracteres
tão profundos o Verbo insculpiu nos milhões de espíritos, que exercem num mesmo
pensamento! Que mensagem tão rigorosamente cumprida é a destes embaixadores de
Deus! Que prodigioso derramamento de raios não espalha o farol das nações,
aquela privilegiada luz do mundo.
***
*A Cruz, Ano I, Rio de
Janeiro, 8 de fevereiro de 1920, n. 11, p. 3.