sexta-feira, 25 de maio de 2018

MUNDO, MUNDO, TRISTE MUNDO.


Ah! esse mundo cheio de aflições! A gente vai andando, vai andando, e esbarra nas almas. E tropeça nas almas. E não sabe o que fazer e o que dizer às almas caídas. E eu aqui, a escrever; e você aí, a ler. Envergonhemo-nos, leitor.
Mundo, mundo, triste mundo. Parece que ventou. Parece que a enorme árvore sacudida atira seus frutos no chão. Onde estão os operários da colheita, que encham seus cestos, e que ao entardecer voltem cantando à casa do Senhor? A gente vai andando, vai andando, e tropeça nas almas maduras. E pisa nas almas caídas. E eu agora a escrever; e você agora a ler; enquanto lá fora se ergue o vento do grande outono.
Como se explica, leitor, que nosso coração não se abrase e não se consuma, que nosso sono não encurte, que nosso zelo não cresça, não cresça mais, não cresça sempre, quando corremos com os olhos essa imensa planície juncada de aflições?
Como se explica que não peçamos a Deus que ainda mais nos ensine a pedir, a pedir que nos atire na fogueira de seu coração?
Queimar por queimar, antes no amor que na justiça. Antes aqui e agora. No dia. Na hora. No momento de arder. No momento de dar com alegria.
Como se explica, leitor, que não peçamos a Deus, mais e mais, que nos ensine a pedir, que nos ensine a pedir para dar, que nos ajude a desejar, a desejar um desejo maior, e que nos tome nas mãos, galho inútil, galho seco, e nos atire assim mesmo, inútil e seco, na grande fogueira de se amor?
Antes queimar assim, por aflição das aflições. Antes torcer-se na chama, dançar na chama, com estalidos e crepitações de quem se consuma e se gaste, nas aflições!
Mundo, mundo, triste mundo - eu aqui a escrever, você aí a ler, ó leitor - e o vento lá fora derrubando as almas maduras!
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Gustavo CORÇÃO. Intermezzo, Janeiro de 1950. in Dez Anos (Crônicas), Rio de Janeiro: Agir Editora, 1957, p. 27.


quarta-feira, 23 de maio de 2018

LIBERDADE OU LIBERTINAGEM?


Gustave Thibon (1903-2001)

Chegou-me casualmente às mãos a tradução de um comunicado cuja publicação ocorreu num número da revista "Culture Soviétique". Trata-se da resposta de uma alta autoridade do Ministério da Cultura a um jovem contestario que criticava "a atitude hipócrita das publicações, filmes e emissões de televisão soviéticos relativamente ao sexo" e que concluía: "sobre este assunto, a nossa informação está muito abaixo do nível internacional e é urgente abrir as comportas".
Por outras palavras, o referido jovem, deslumbrado pela liberdade sexual ao contemplar o mar de lama que inunda o Ocidente, verifica, despeitado, que a Rússia ainda está a seco e reclama um aumento maciço da produção pornográfica, a fim de restabelecer a paridade entre o seu país e as nações burguesas...
A revista reproduz a carta desse jovem e dá-lhe esta resposta oficial:

"Lenine sempre criticou implacavelmente a noção de amor livre como sendo de origem burguesa e estranha à moralidade soviética. Amor livre de quê? De toda a responsabilidade para com a pessoa que nos é querida? Mas tal amor, na realidade, ‘está livre do próprio amor’, porque este sentimento, pela sua própria natureza e excelência, pressupõe sempre uma responsabilidade ao mesmo tempo para consigo mesmo e para com a pessoa amada".

Eu tenho dito centenas de vezes estas mesmas coisas, quase com as mesmas palavras, e alegra-me - uma vez não são vezes - o fato de me sentir de pleno acordo com o ensino oficial do Estado soviético. Só com a diferença de que, ao defender os princípios elementares da moral sexual, não me colocava sob o patrocínio sagrado de Lenine e obtinha o efeito de que me tratassem regularmente como um detestável burguês retrógrado. Pois bem, aqui estou eu agora afiançado pelo socialismo mais ortodoxo.
A eminente doutora que subscreve o comunicado prossegue nestes termos:

"Num país socialista, não há nenhuma razão para que se desenvolva a teoria do amor livre. Como médica, considero que a pornografia é nociva, sobretudo no período do desenvolvimento físico e espiritual dos adolescentes. A derrogação das leis contra a pornografia, no Ocidente, conduz a um verdadeiro beco sem saída moral e à sobre excitação de emoções perversas que não são naturais ao homem... A nossa sociedade deve velar pela saúde moral dos nossos jovens trabalhadores e estudantes".

Uma vez mais, não se pode deixar de aprovar sem restrições tal declaração, porque não se trata já de moral burguesa ou socialista, mas simplesmente da moral resultante das exigências do homem eterno. E temos de confessar que, neste ponto, o nosso liberalismo que conduz à distribuição da pílula às adolescentes, à democratização do aborto e à exibição pornográfica, este liberalismo avançado à maneira dos frutos bichosos e do queijo que se decompõe, desqualifica-nos no nosso combate pela liberdade contra os regimes totalitários.
Eis aonde conduz a dissociação entre a política e a moral que grassa nas nossas democracias deliquescentes. Mas um povo não pode viver indefinidamente sem moral e esta, rejeitada por uma liberdade transviada, renasce, mais cedo ou mais tarde, sob a pressão da tirania política. Daqui a alternativa que se põe ao Ocidente: ou salvar livremente a liberdade impondo-lhe as disciplinas necessárias à sobrevivência, ou continuar a deixar a liberdade degradar-se em libertinagem - o que exige o mesmo remédio que um membro incuravelmente gangrenado: a amputação.



quinta-feira, 17 de maio de 2018

UM CAMINHAR LADO A LADO


“Imagem por imagem, prefiro a de Santo Agostinho, que assim descreve a atitude dos casados: um caminhar lado a lado com os olhos postos no objetivo comum.
E é esse objetivo comum, a casa, os filhos, a instituição benéfica para os que nela vivem e para os outros, o viveiro onde se prepara a amizade cívica, que é a alma da sociedade – é nesse objetivo que está o fim principal do casamento, o fim generoso, aberto, fecundo, difusivo, o fim que tem títulos para exigir do casal o espírito de sacrifício e o esquecimento de si mesmo”.
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Gustavo Corção. Claro Escuro, Rio de Janeiro: Agir, 1963, p. 72.


terça-feira, 15 de maio de 2018

NOTAS DE PÉGUY SOBRE O TRABALHO - I


Charles PÉGUY (1873-1914)*

Quem haveria de dizer que nós fomos criados no meio de um povo alegre? Naquele tempo a oficina era o lugar da terra em que os homens são felizes. Hoje a oficina é o lugar da terra em que os homens se recriminam, se odeiam e se batem; se matam. No meu tempo todo mundo cantava (exceto eu, mas eu já era indigno de ser daquele tempo). Na maior parte das corporações contava-se. Hoje se resmunga. Naquele tempo não se ganhava nada, por assim dizer. Os salários eram de uma pequenez que não se faz ideia. E, no entanto, todo mundo respira. Havia nas mais humildes casas uma espécie de facilidade cuja lembrança se perdeu. Na verdade no se calculava. E não era preciso calcular. Podia-se educar os filhos. E se educavam. Não havia esse estrangulamento econômico de hoje, essa estrangulação científica, fria, retangular, regular, nítida, caprichada, sem uma emenda, implacável, sóbria, comum, constante, cômoda como uma virtude, da qual não há nada mais a dizer, e na qual o estrangulador está tão evidentemente sem razão. Não se saberá nunca até onde ia a decência e a justeza de alma desse povo; uma tal firmeza, uma tal cultura profunda nunca mais se encontrará. Nem tamanha elegância e precaução no falar. Aquela gente se envergonharia de nosso melhor tom de hoje, que é o tom burguês. E hoje todo mundo é burguês. Quem poderia crer, e isso vem ainda a dar no mesmo, que nós conhecemos operários que tinham vontade de trabalhar. Só se pensava em trabalhar. Nós conhecemos operários que de manhã, não penavam senão em trabalhar. Eles se levantavam de manhã (e a que horas!) e cantavam à ideia de partir para o trabalho. Às onze horas cantavam quando iam à sopa. E sempre Victor Hugo no fim de contas; e é sempre a Victor Hugo que é preciso voltar: Eles riam, eles cantavam... Trabalhar era a sua própria alegria, a raiz profunda do seu ser. E a razão do seu ser. Havia uma honra incrível do trabalho, a mais vela de todas as honras, a mais cristã, a única talvez que tenha sentido. É por isto, por exemplo, que eu digo que um livre-pensador daquele tempo era mais cristão que um católico dos nossos dias. Porque um católico dos nossos dias é forçosamente um burguês. E hoje em dia todo mundo é burguês.
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*Revista A Ordem, n. 06, Vol. XXXVII,  junho de 1947, p. 31-32.


sexta-feira, 11 de maio de 2018

UMA PROVISÃO DE LÁGRIMAS


"Todos, até as mães mais devotadas, não terão feito tudo o que podiam, tudo o que deviam ter feito. Exceto uma talvez: a que estava de pé, ao lado da Cruz. E não fora fácil, aquele filho misterioso, que aos doze anos se esconde no templo e responde asperamente aos pais: "Por que me procuráveis?" E agora, que ela o via na Cruz, ela desejava também uma chance. Não que o Filho sobrevivesse: ela sabia que fizera tudo, e que tudo deveria mesmo se cumprir. Mas o que ela queria era ter sabido antes, para ter antes começado a chorar. "Se ela tivesse sabido - diz PÉGUY -, ela teria chorado sempre, chorado toda sua vida, chorado antecipadamente, chorado de reserva. Ela não teria sido traída surpreendida pela dor..." Teria chorado em Belém e em Nazaré, no templo e na rua. Teria feito uma provisão de lágrimas".
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Dom Marcos Barbosa. Uma chance, Revista A Ordem, n. 05, Maio de 1951, p. 267-268.


quinta-feira, 3 de maio de 2018

RESSURREIÇÃO DA CARNE


Lauro de Araújo Barbosa* (1915-1997)

Teu corpo, Perfeito como o vaso do oleiro,
Em que eu bebi a essência de tu'alma,
Há de voltar ao solo,
De onde vem a argila.

Tuas mãos,
Que se ergueram numa oferta,
E se puseram sobre as minhas num gesto de noivado,
Hão de tonar-se em humus,
De onde vem o lírio.

Teu cabelo,
Que cobria tua cabeça como um véu,
Diante da minha majestade de homem,
Há de voltar às minas,
De onde vem o auro.

Teus olhos,
Carvões desoladores,
Que queimaram a minh'alma e purificaram o meu corpo,
Se apagarão no céu,
De onde vem a luz.

Tua boca, Livro purpureo,
Que guardava as palavras da Sabedoria,
Mergulhará no mar,
De onde o coral vem.

Teus gestos,
Sóbrios como um culto,
Que marcaram o límite do meu mundo,
Hão de perder-se no espaço,
Como um vôo ferido.

Tua voz,
Que aplacava a minha ira
E chegava à torre do meu exílio
Há de se partir como a corda, de onde vem o som.

Teus passos,
Que maracaram sulcos na minha carne,
Hão de se perder como o rastro do peregrino,
Que a areia do deserto apaga
Na direção incerta.

Mas um dia,
Ao soar das Trombetas,
As tuas particulas desagregadas,
Entradas na formação de outros mundos,
De novo formarão um todo perfeito,
Sem ruga e sem mancha.

Então os anjos,
Com as suas asas de fogo,
Longas e rubras,
Formarão um círculo em torno do teu corpo,
Para defendê-lo;
E ele será como a cidade invicta,
Onde ninguém Penetra.

Mas quando eu chegar.
Transfigurado,
Na minha veste de nupcias,
Os anjos se afastarão,
Silenciosos...

E eu, comovido
Ante a tua beleza,
Que nada iguala,
Apenas tocarei, com medo,
A orla do teu vestido.
*****



*Lauro de Araújo Barbosa é o nome de batismo de DOM MARCOS BARBOSA, o monge poeta, tradutor de "O Pequeno Príncipe", a magnífica obra de Saint-Exupéry, e também, entre outras, de "O Anúncio feito a Maria" de Paul Claudel. A poesia que ora publicamos foi extraída da Revista A Ordem, 1937, n. 80, p. 51-53.