segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

POEMA DE MARIE DE SAINT-EXUPÉRY (MÃE DE ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY) APÓS A PERDA DE SEU FILHO

“Na manhã da ressurreição,
Em prece ajoelhada
Eu repetirei tua oração
Madalena, na pedra prostrada
No jardim de Getsâmani
“Senhor, onde o pusestes?”
Em todo lugar, procuro meu filho
Pois no dia do meu parto
Gritei para trazê-lo ao mundo
E hoje grito ainda
Quando não sei onde finda
Nada sei, nem mesmo de um túmulo.
Mas ‘sua fome de luz era tanta
Que subiu’, peregrino das estrelas.
Terá chegado, peregrino do céu, 
Às balizas de Deus? Ah! Se eu soubesse
Choraria menos sob meu véu ”

*****



CRIANÇAS DE HOJE

Luce Quenette (1904-1977)*

Em toda sociedade civilizada, há um constante apelo à honra, o que naturalmente provoca sentimento de culpa nos que violam suas leis e usos. Alguém dirá que uma tal sociedade engendra a hipocrisia. Pois bem! Quando a virtude e a decência são honradas, o homem perverso não tem outro recurso, se não quiser converter-se, que o de dissimular, fingindo virtude. E finge tão mal, que as pessoas honestas chamam-no hipócrita. Mas, “a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”. A decência e a virtude não lhe servem de causa, mas de ocasião. A honra a que elas têm direito e que lhes prestamos é ocasião de inveja, dissimulação, astúcia e furto. Ora, toda lei justa, a começar pelos Dez Mandamentos, é ocasião de pecado para o coração concupiscente. A lei protege o fariseu, evidentemente. Poder-se-ia dizer que a lei é má, como fala São Paulo? Longe disto. Ela é boa. Mas por si mesma, sem a graça de Jesus Cristo, não pode nada. Toda organização da sociedade cristã está aí. É preciso que Ele reine.
A cura de toda hipocrisia e de todo cinismo é o conhecimento da lei em estado de graça.
* * *
Quem vos fala é uma mãe. Ela leva a Péraudière seu filho mais velho, de cinco anos e meio. Com coragem, seu marido e ela percebem o rosto ligeiramente angustiado do pequeno João, que nunca deixara o doce lar:
“Nós o teríamos colocado no Sacré-Coeur, com os jesuítas, bem próximo de nossa casa, mas soubemos que nas turmas da 10a. série, sim, no Sacré-Coeur (!), havia lições de iniciação sexual, e com imagens. Foi uma mãe que nos disse isso. Ela tinha acabado de levar seu filhinho para a entrada do colégio. Disse a ela: “a senhora precisa tirá-lo de lá, não pode deixar que se cometa este atentado.” Ela suspirou: “Que posso fazer? Isso agora é permitido”. Horrorizada, interroguei outros pais na mesma situação e cheguei a esta terrível conclusão: não somente eles o admitiam, mas SE JUSTIFICAVAM, pensando que estavam legitimamente dispensados de dar aos filhos uma iniciação que os embaraçava; eles calavam sua repugnância com o slogan criminoso: você sabe, hoje em dia, é um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde!”
* * *
Eis um pequeno idoso (de um ano de idade) que foi, antes do mais, insuportável e que, de volta das férias, mantinha-se ereto, com um aspeto respeitoso e altivo entre o pai e a mãe. Eu sentia, no entanto, que aquilo era demais. A mãe fez com que o filho fosse dar uma volta e me disse que, durante as férias, a criança fora terrível. “Bom, disse eu, é preciso chamá-lo e dizer tudo na frente dele.” É o que eu faço. Meu filho abaixa a cabeça, confuso, envergonhado, arrependido. A mãe, tímida: “Sabe, filho, não é para te machucar nem te fazer sofrer que dizemos essas coisas.” — “Mas sim, Madame, é para fazer sofrer, para machucar seu coração, que ama a mamãe, para que ele se arrependa e que, nas próximas férias, vocês tenham um filho carinhoso. Ele entende muito bem e sabe que estamos certos.” Dois olhares: Alan eleva os olhos, que oferecem seu acordo e humildade. Por sua vez, o olhar bom da mãe é de espanto e admiração. Quanto ao pai (pois há ainda sua opinião), este se inclina perto da mãe e diz, contente: “Viste, bem que te avisei!”
Que estes amigos encantadores perdoem-me de mostrar, por meio deles, na alma do educador e do filho deles, a passagem de uma correção derrisória, conforme a moda, à nobre beleza da justiça cristã.
* * *
É espantoso o zelo com que as crianças cristãs recebem o apelo doutrinal à conversão. Seu coração, preparado pelo batismo e pela fé de seus pais, instintivamente repugna à justificação conforme o mundo. Claro, uma criança mimada se compraz, em seu egoísmo e sensualidade, de ser “compreendida” e não “repreendida”. Serve-se gulosa e insolentemente das falsas desculpas e explicações que lhes oferecem para seus pecados. Mas isso a enerva, a excita, e não a acalma. Os grandes ingênuos que “compreendem” sua gulodice, sua preguiça, sua tirania, ele os despreza e explora. Mas, se os pais são cristãos, se estão resolvidos a preservar a alma de suas crianças, custe o que custar, ainda que lhes faltem algumas luzes e, por conseguinte, o savoir-faire, nada estará perdido. Nós vemos isso claramente. O pequeno novato entra na Péraudière convencido de que é preciso fugir do mal que o assediou, que respirou e que cometeu nas más escolas; ele sabe que vai aprender a servir a Deus segundo a Tradição e que é por isso que seus pais se separaram dele. A disposição fundamental é justa.
Então, convém, o quanto antes, após alguns dias em que se terá experimentado a afeição e a solicitude, levá-lo à conversão. O que eu disse aqui é fruto da experiência dentro de uma escola, em busca de nosso fim essencial; isso, eu digo para todos os fundadores de escola e para todas as famílias.
Graças a Deus e a pais santos, as crianças já entram na escola convertidos. Mas, para tantos outros, a reeducação da alma, afetada pela terrível psicologia que justifica o mal, deve começar pela conversão. Resumirei isso tudo com a seguinte e surpreendente declaração de uma criança de dez anos, que guardo comigo há muitos anos, como a fórmula mesma da conversão do coração: “Pareceu-me, de repente, disse-me esta criança, que Deus me dizia: Olha para tua vida! Daí, enxerguei todos os meus pecados, quis que eu nunca voltasse a cometê-los e fui para o confessionário.”
Eis o ponto de partida, todo resto é vão: as exortações para se dedicar, para agradar àqueles que o amam etc, etc, tudo é vão, antes.
Olha, meu filho, e vê, à luz das lições do catecismo, da lição sobre o pecado, dos novíssimos, do exame de consciência seguindo os mandamentos, à luz da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Olha, minha criança, olha para tua vida! A criança volta-se para si mesma, se entristece na contrição e examina seus pecados cuidadosamente, com uma seriedade que nos faz repetir para nós mesmos: “Se não fores semelhantes a um desses pequeninos!” E finalmente, com confiança e humildade, se entrega ao Tribunal da Penitência.
Bendito o padre, ministro fiel de Jesus, que recebe com respeito e atenção este retorno do filho pródigo! Digo mesmo “retorno do filho pródigo” porque sei que, mesmo entre pessoas piedosas, que se dizem fiéis e tradicionalistas, ainda reina o instinto estúpido de não levar a sério as faltas de uma criança, de sorrir de sua gravidade, de não dar importância a seu arrependimento pela maneira pueril de a acolher.
Muitos educadores me acusam de dar muita importância a esta reviravolta na alma de uma criança, de levá-la mesmo às raias do escrúpulo e, porque não, de ser jansenista…
Julga-se a árvore pelos seus frutos: a criança convertida sai do Tribunal da Penitência radiante, banhada pela misericórdia, começando uma nova vida; ela corre para diante do Tabernáculo, reza sua penitência com os mesmos sentimentos de Joinville ao partir para a cruzada.
É preciso saber que tudo que se subtrai da gravidade do pecado por meio de um freudismo disfarçado, subtrai-se da misericórdia de Deus e da dignidade livre do animal racional.
Após este banho salutar de penitência, a criança convertida não está ao abrigo das tentações; contudo, a experiência permite dizer que elas são bem menos freqüentes e que “dão menos vontade”. A Santa Virgem esmaga a cabeça da serpente, sobretudo se temos o hábito do recurso filial e contínuo à sua Santa Maternidade, através do terço cotidiano e da invocação repetida.
A criança convertida é mais calma, mais feliz; possui “esta moderação das pessoas felizes” da qual fala La Rochefoucauld. Ficam mais espaçadas as cóleras de criança mimada e sem vida interior, que se revoltava à privação de um prazer ou à perspectiva de um esforço.
A criança convertida é mais inteligente. O nível intelectual das crianças saídas das escolas de hoje é lamentável. Na verdade, as classes atuais não fazem mais pensar. As novas matemáticas ajudariam a preencher este vazio, se a inacreditável preguiça não o impedisse. Ora, a conversão opera o mais profundo movimento das faculdades espirituais. A graça exige da alma no que toca a inteligência, intuição, lucidez, atenção; no que toca a vontade, humildade, resolução, execução, além do sábio governo da sensibilidade.
É possível mensurar de quantos bens naturais e sobrenaturais estão privadas as crianças de hoje, por obra de uma heresia que as submete a vigílias de penitência e à sacrílegas absolvições coletivas, sem confissão de pecados?
* * *
É preciso que os pais católicos estejam convencidos da necessidade sobrenatural da penitência e da conversão; e que, nesta perspectiva (de guardar as crianças na fé de Jesus Cristo, quer dizer, em estado de graça), eles tornem-se severos.
Outro fruto da experiência: as crianças convertidas têm orgulho de ter pais severos. Isso é evidente: a criança contestadora se insurge contra toda proibição, pois despreza a lei e aqueles que a anunciam. A criança cristã honra a autoridade, que a quer em paz com o Céu.
Isso é evidente, comprovado.
Recebi, em meados de setembro, duas cartas de dois irmãos terríveis, briguentos, mas convertidos. Ei-las: “No final destas férias, tornamo-nos insuportáveis de novo. Mas nossos pais agiram bem: brigaram conosco e nos puniram como merecíamos.”
Esta é uma apreciação de espíritos livres e clarividentes, sem sombra de insolência, mas profundamente satisfeitos da ordem justa das coisas.
Mais um fato, dentre os muitos do ano passado: explicávamos, no catecismo, o quarto mandamento; quatro meninos, de seis a oito anos, enxugavam a louça; criam-se a sós; mas, enquanto isso, uma senhorita corrigia seus cadernos numa sala vizinha, cuja porta estava aberta. Estes são os mais velhos, que tem o hábito de lavar a louça em paz e conscienciosamente.
A conversa a sós estava bem animada:
Roberto: tua mãe te dá muita bronca?
Carlos: Ah sim, e me castiga mais que às meninas.
Roberto: Por quê?
Carlos (sem modéstia): Porque as meninas fazem menos besteiras do que os meninos (ele tem três irmãzinhas).
João: E quando tua mãe te castiga, ela te bate?
Carlos: Antes ela me explica, sempre, e depois que eu entendo, ela bate bem forte. Aí, então, tomo juízo.
Roberto: Quem me bate é o papai. Ele pega um couro e bate bem forte. E o teu pai, ele é duro contigo?
Carlos: Menos que a mamãe, porque ele quase sempre está fora. Mas mamãe conta para ele.
João: Meu pai começou a dar bronca há pouco; desde que estou na Péraudière, ele dá muito mais bronca.
O quarto menino não disse nada. E você, que teu pai e tua mãe fazem?
Paulo, (envergonhado e, mesmo assim, tentando se gabar): Mamãe se zanga e meu pai também.
João: Mas eles te castigam?
Paulo: Eles dizem que isso certamente vai acontecer.
João: Então, fala para eles… Explica como se faz.
* * *
Alguém dirá: “Mas você não tem o direito de ‘julgar’ a culpa de ninguém”. Compreendamos: eu certamente não tenho o direito de julgar o seu grau de culpa e de responsabilidade. Não tenho este direito porque não tenho como exercê-lo. Não enxergamos o interior dos corações. Só Deus julga. Mas tenho o dever de julgar a espécie moral do ato. Dever inscrito na economia mesma da Lei: não matarásnão atentarás contra a castidadenão tomarás o bem alheio. Isto evidentemente significa que o homicídio, o adultério e o roubo são crimes e que aquele que os comete é culpado, é pecador.
A Caridade, a verdadeira, está em preveni-los disso; o que significa, em conformidade com a justa e familiar expressão, “fazer com que se sintam culpados”.
O sentimento de culpa, que é uma emoção, tal qual o pudor no inocente, é advertência e prevenção. É a ressonância na sensibilidade dos ditames da consciência; a culpa é a vingança da honra, a vitória da justiça, da justiça de Deus e de uma sociedade que reconhece o valor absoluto do Bem.
Bendita e terrível culpa, colada ao dogma do pecado original: tiveram vergonha e se ocultaram. “E o Senhor Deus chamou por Adão, e disse-lhe: Onde estás?”. O inimigo da Salvação enganou-os mortalmente: “sereis como deuses” A terrível e austera ironia do Todo-Poderoso faz crescer a culpa, torna-a aguda, cortante, até que os humilhe e mortifique: “Eis que Adão se tornou como um de nós!”
A alma envergonhada experimenta a feiura e o ridículo do pecado. Então, ela escuta a promessa de um Redentor.
Açular o vício atacando o sentimento de culpa, não é caridade, mas crueldade satânica.
Face à Onipotência de Deus, à morte, ao inferno, ao amor de Nosso Senhor, à clareza dos seus mandamentos e da Cruz, confesso: sim, isto eu fiz. Em verdade, digo que fui insensato. Eu me levantarei e irei ao meu Pai.
Demonstrar, pela razão e pela fé, a loucura do pecado à criança, após o ter meditado e vivido por si mesmo, é fortalecer seu coração e defendê-lo contra Satã; é despertar, ressuscitar de algum modo a inteligência; é incendiar de amor sua vontade e enchê-la de força para todo o sempre, quaisquer que sejam as quedas possíveis.
Mas, ao contrário, “compreender” o pecado, pretender justificá-lo, é desarmar e desesperar (porque é enganar) a natureza livre resgatada por Jesus Cristo.
“Fatal”, “inevitável”, “renovador”, “enriquecedor”, — o pecado compreendido desta forma escapa à Redenção, e nos conduz ao inferno; o pecado, assim travestido, tornar-se-á inconsolável, inexpiável, irremissível.
* * *
Se compreender o ato pecaminoso é enfatizar as circunstâncias atenuantes, o melhor é recorrer à própria doutrina da Redenção. Aí, a psicologia há de encontrar tudo que é preciso.
O catecismo nos ensina que o pecado do anjo é irremissível, porque o anjo, puro espírito, vê diretamente, sem o véu da carne, a obrigação absoluta do serviço de Deus. Quando este diz: “Non serviam”, sua clarividência é completa, assim como seu consentimento; daí, precipita-se no inferno.
O homem, feito de corpo e alma, vê o Bem e a obrigação do serviço de Deus, mas sob os véus dos seus sentidos, aos quais falam as coisas sensíveis. O fruto proibido não era, para o homem, apenas proibido, mas “bom para comer e formoso aos olhos”. A mulher escuta a serpente e o fruto proibido é, em seguida, apresentado por Eva à Adão, que é fraco e complacente com relação à Eva.
Deus pode condená-lo e precipitá-lo no inferno; mas Ele condescende, porque o homem fora induzido pela fraqueza da carne, prometendo-lhe um Salvador após o seu arrependimento.
Mas o ato do pecado em si, em sua malicia essencial, é absurdo e incompreensível. É o mistério da iniqüidade em cada consciência. Preferir a criatura à Vontade do Criador, o prazer à eternidade da alegria, sublevar-se contra o amor de Nosso Senhor e recusar-Lhe submissão e obediência quando a razão e a fé gritam sua necessidade, isto, em si, no ato mesmo, é algo que não se pode compreender, é algo de incompreensível, e tão errado quando mau.
Daí ser preciso, para a conversão, contemplar, se assim podemos dizer, o absurdo do pecado e, depois de haver compreendido suas tristes circunstâncias (a fraqueza da carne, a cegueira da razão, a tibieza da fé), compreender também que tudo isso não explica a malicia intrínseca deste consentimento interior ao mal.
Neste ponto, o catecismo é esclarecedor. Para que haja pecado mortal, é preciso que haja:
1) matéria grave;
2) plena consciência;
3) pleno consentimento.
Isto é demonstrar o absurdo do pecado, em sua própria natureza; ora, um dos motivos mais eficazes de conversão, e que assegura a sua solidez, é a consideração do absurdo do pecado.
* * *
Muitas mães se preocupam com o catecismo. Querem encontrar catequistas, mas não pensam em ensinar o catecismo elas mesmas. Ficamos estarrecidos de ver tantas mães em tal situação. A mãe, a irmã ou o irmão mais velho e, porque não, o pai, os avós devem ser ou tornar-se capazes, o mais rápido possível, de ensinar em casa a doutrina cristã que receberam.
É preciso estudar. É um dever estrito, uma obrigação pela qual prestaremos contas no Tribunal de Deus.
Fiquei surpresa, no retorno às aulas, ao constatar que alguns destes pequeninos (6, 7 anos de idades) não sabiam o pelo-sinal, que os meninos maiores ignoravam o Pai Nosso e a Ave Maria em latim, ou responder o Angelus em latim.
Como é fácil remediar isso tudo!
Pacientemente repetimos que é preciso trabalhar o catecismo de São Pio X todo dia, o qual deve ser procurado, além do Catecismo do Padre Emmanuel (Catecismo da Família Cristã), sobre o qual Jean Madiran escreveu: “Se tiverem outros catecismos, este não será redundante. Se preferirem ter apenas um livro de catecismo, é este que recomendamos. É útil para a família inteira, em família; serve aos grandes e aos pequenos, aos pais e aos filhos.”
Mãos à obra! todo dia! A Santa Virgem abençoará esta meia hora arrancada, na busca do Céu, das ocupações da terra. As graças atuais serão dadas à professora materna, junto com os frutos da luz e da paz no coração dos pequenos.
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*Luce Quenette dedicou toda a sua vida à educação cristã de crianças e jovens. Nasceu em 1904 em Saint-Etienne em uma família com fé forte e profunda. Após profundos estudos na faculdade católica de Lyon em 1928, ela se entregou com dedicação incansável à educação católica gratuita até sua morte em 1977.
Duas escolas são hoje testemunhas de sua ação: a escola Péraudière em Montrottier, no Ródano, e a escola Sainte-Anne de Providence, na Sabóia.
Luce Quenette escreveu extensivamente sobre temas de educação e religião, quer para a revista Itinéraires, quer para a revista de comunicação com pais de alunos, a Carta da Péraudière.

sábado, 27 de janeiro de 2018

O SENTIDO DA TRADIÇÃO EM SAINT-EXUPÉRY

“Quero que chorem por muito tempo os seus lutos, que prestem demoradas homenagens aos mortos, porque a herança passa lentamente de geração para geração”. (Cidadela, I, p. 17).

“Quando nenhum elemento estável liga as gerações umas às outras, a troca deixa de ser possível e o tempo passa a correr tão inútil como a areia de uma ampulheta”. (Cidadela, VI, p. 31).

“O tesouro interior transmite-se, porém, não pela palavra, mas sim pela filiação do amor. E, de amor em amor, vão legando uns aos outros esta herança. Basta romper o contato, uma só vez que seja de geração para geração, e esse amor morrerá”. (Cidadela, XXII, p. 81).

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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

UMA VELA NA ESCURIDÃO

Gustave Thibon (1903-2001)

"O sorriso não é algo devido, senão um favor, uma graça, a forma de converter um encontro em luz".

É a hora do descontentamento em todas suas formas, desde a lamentação resignada até a sublevação manifesta. Velhos e jovens se conciliam para denegrir o presente: uns sentem nostalgia do passado e outros colocam toda sua esperança nas mudanças que aportará o porvir. Em todos os graus da escala social, as pessoas lamentam de sua sorte e se esgotam em críticas. Em suma, ninguém está contente com nada, salvo de si mesmo, pois, quem aceita sua parte de responsabilidade nos males que deplora?
Ao sair de uma reunião impregnada por completo deste ambiente taciturno, o azar de uma leitura me fez reparar neste pensamento de Confúcio: "Mais vale acender uma luz, por pequena que seja, que maldizer a escuridão ".

- A falta de vela

Um amigo a quem comentei esta sentença me respondeu: "De acordo, mas Confúcio viveu em uma sociedade descentralizada, de tipo agrícola e artesanal, onde o indivíduo podia fazer algo para remediar as desgraças da época. Quando anoitecia, se acendia uma vela; se fazia frio, podia-se recorrer a lenha nos bosques mais próximos e havia uma chaminé em cada casa para acender o fogo. Mas, o que se pode fazer hoje em dia em uma grande cidade quando um apagão de energia nos priva simultaneamente de luz e de calor?".
Igualmente, que recursos tem a iniciativa individual contra males como a inflação, o desemprego, uma greve dos correios ou de ferroviários? O mal adquiriu um caráter coletivo que exige igualmente remédios coletivos, quer dizer, medidas de conjunto que correspondem em grande parte aos poderes públicos. Daí a politização geral dos problemas sociais. "Que espera o governo para...?", diz espontaneamente o homem que passa pela rua. Em uma palavra, estamos em uma situação em que as pessoas, por falta de vela, não tem outro recurso senão maldizer a noite até que hasta que se solucione o problema da iluminação pública.
Reconheço — e este é o reverso angustioso de nossa técnica, as vezes libertadora pela potência dos meios que põe a nossa disposição, e alienante pelo excesso de centralização — que o homem moderno tem cada vez mais domínio sobre os elementos externos de seu destino. O que favorece por uma parte a passividade, pois se espera que as soluções venham de fora, e de outra o afã reivindicativo, o desejo de receber sempre mais. O indivíduo pode, sem embargo, acender uma vela nesta noite, ao menos estabelecendo o contato humano, tão reduzido hoje pela concentração e o anonimato tecnocrático. Nós lamentamos que a tecnocracia imponha aos homens relações quase unicamente funcionais. Mas depende de cada um de nós remontar este obstáculo. Ofereço como prova dois exemplos opostos.

- Intercâmbio luminoso

Me encontrava faz alguns meses em uma oficina de correios. Uma anciã que desejava enviar uma carta disse timidamente a funcionária: "Esqueci meus óculos, teria a bondade de preencher meus dados?". A empregada, com um olhar em que se unem a frieza pessoal e a indiferença administrativa, responde irritada: "Crê que tenho tempo para fazer seu trabalho? Olhe o impresso e verá que diz: preencher pelo usuário". Ainda estou vendo a pobre anciã retirar-se (depois pude ajudá-la), andando mais devagar e com o ânimo gelado por esta acolhida glacial.
Outra oficina de correios da mesma cidade. Detrás de um dos guinches mais frequentados, uma jovem tranquila, amável, recebe a cada um com um sorriso espontâneo e acolhedor, desconhecido inclusive entre os comerciantes mais zelosos, porque tal sorriso se dirige não ao cliente, senão ao ser humano. Após fazer os envios postais aos quais tinha direito pagando as tarifas usuais, levei comigo esse sorriso inesperado que não era algo devido, senão um favor, uma graça. E, ademais, me senti disposto a sorrir aos interlocutores que devia encontrar durante a jornada, pois o bom humor, a atenção, a afabilidade, provocam reações em cadeia do mesmo modo que a indiferença ou a animosidade.

Este elemento de graça e gratidão (as duas palavras têm a mesma etimologia) confere as relações mais superficiais uma qualidade única e insubstituível. Graças a ele, o encontro anônimo de dois peões no tabuleiro social pode converter-se em um intercâmbio luminoso e vivo entre duas presenças. Este clarão de simpatia, que está ao alcance de todos em qualquer momento, ao dissipar a escuridão, nos evita maldizer.
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PROGRAMA DE SANTIDADE


Rda. Madre Marie Cronier – 1857-1937
Fundadora e primeira Abadessa do Mosteiro de
Sainte-Scholastique de Dourgne

Domingo, 8 de abril – Sentido:

Jesus falou-me muito das virtudes interiores. Ele deseja que não haja nem movimento, nem uma palavra sequer, por parte daquela de quem gosta tanto, que não seja regulada pela Sua Graça. Compreendi toda a extensão que ele dava às virtudes interiores, humildes, desconhecidas, escondidas.
Compreendi sobre tudo que ele era a Luz e a Verdade. Inundava minha alma com seus divinos raios que lhe permitem perceber a santidade verdadeira, prática, profunda… Prometeu-me sua luz e disse-me que este era o dom maior que pudesse me dar neste mundo. Esta luz divina que ilumina, que revela a santidade, os preciosos segredos de Jesus, esta luz divina que traz o calor, o amor.
Voltando às virtudes interiores, pediu-me que amasse muito essas humildes virtudes cuja existência ninguém suspeita e cuja beleza somente Ele, sozinho, pode conhecer, e acrescentou: nunca pronuncie uma palavra em teu próprio louvor, evite freqüentemente uma palavra, um gesto, um olhar; caminhe até perder de vista com essas preciosas virtudes escondidas; prefira o silêncio, ame passar despercebida, não pronuncie jamais uma palavra inútil, sempre comigo, sempre habilidosa em te esconder atrás do silêncio, da paz, do esquecimento das criaturas; caminhe, caminhe. A perfeição não tem limites – caminhe sempre mais para frente.
Remova cada dia os menores grãos de poeira. Essas virtudes tão humildes, tão pequenas na aparência, são abismos que a alma pode sempre aprofundar; minha filha, essas virtudes tão humildes, tão modestas, são também tesouros que encantam meu divino Coração. Olhe para a minha divina Mãe e contemple esta obra-prima das virtudes interiores. Quero que nelas você progrida muito. Para tanto, seja amável, mas com uma suave gravidade e um tanto séria, seja paciente sem que se possa perceber tal ato de paciência de sua parte; sem que se possa descobrir se algo te contrista ou te irrita; seja tão boa que nada possa anuviar teu rosto, mas sempre com suave seriedade, seja tão caridosa que teus lábios nunca profiram a menor crítica; esteja sempre pronta a esquecer, a perdoar, a ajudar.
Seja tão discreta que passe despercebida.
Ao agir, faça pouco barulho; al falar, diga poucas palavras, submete tua vontade cada vez que for possível sem faltar aos deveres; aceita a opinião dos outros por condescendência, por virtude: teu Jesus dar-te-á tato, a finura necessários para agir no momento certo, sem fraqueza, sem abuso.
Procura mortificar-se em cada encontro com tanta boa vontade e finura que somente Jesus seja testemunha.
Procura ser esquecida, não fala de ti mesma nem bem, nem mal: tenha sempre um sorriso nos lábios e com tanta simplicidade que a própria virtude pareça natural aos olhos de todos; ficará minorada pela grandeza de sua própria perfeição.
Tendo falado assim, Jesus pediu-me ainda a coragem paciente, generosa, constante, exigida por este esforço interior praticado, tão mortificante, tão escondido, tão extenso, tão perpétuo…
Eu mesma notei algumas imperfeições, algumas palavras inúteis, uma precipitação exagerada numa ação, um instante de tristeza exagerada ao pensar na separação que tanto me fere. Mas procurarei fazer melhor amanhã.
Jesus deu-me a entender que se tratava de um trabalho para toda a minha vida e que o importante era nunca estar satisfeita, nunca descansar.

9 de abril.

Ele me pede não fazer nada que seja inútil: vou me esforçar com afinco… nada de natural, tudo com acalma, tudo sem barulho, tudo com mansidão, mesmo se for interrompida vinte vezes, tudo sem vontade própria mas unicamente pela vontade d’ Ele, de tal forma que esteja pronta a tudo deixar, tudo abandonar; enfim, um desprendimento total de modo a não me deixar cativar nem por um instante, escolher as tarefas menos atraentes.
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Fonte: http://beneditinos.org.br/2012/02/programa-de-santidade/


FORMAR CRISTO EM UM ALMA

"Os pais participam da obra da criação ao gerar os filhos e devem participar da obra da redenção, educando os filhos para Deus. E a redenção se faz com sofrimento. A educação dos filhos se faz a base de sofrimentos, de abnegação, de sacrifícios. Tudo isso junto com grandes alegrias, e a primeira dessas alegrias é a de poder formar Cristo em uma alma."
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Trecho do Sermão para o 2º Domingo depois da Epifania - 14.01.2018 – Padre Daniel Pinheiro, IBP.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A EDUCAÇÃO POPULAR E O CATOLICISMO - UMA CARTA DE PAUL BOURGET

Meu querido colega; não posso dar melhor resposta ao seu questionário de que mandando-lhe algumas linhas do maior diagnóstico social que ainda foi feito sobre a França moderna:
“O homem não é bom nem mau, nasce com instintos e aptidões. A sociedade, longe de depravá-lo, como pretende Rousseau, o aperfeiçoa e torna melhor. Mas vem o interesse e lhe desenvolve as más inclinações.
O Cristianismo e sobretudo o Catolicismo, sendo um completo sistema de repressão das tendências depravadas e perniciosas do homem, é o maior elemento de ordem social. A instrução ou a educação ministrada pelas corporações religiosas é o grande princípio de existência para os povos, o único meio de diminuir a soma do mal e de aumentar a soma do bem na sociedade”.
Estas formulas tão nítidas são de Balzac e encontram-se no “Preface Genérale” da “Comédie Humaine”.
Este prefácio traz a data de 1842. A multiplicação dos crimes cometidos pelos jovens educados na atmosfera da França atual confirma a exatidão das suas conclusões, com as quais concordo absolutamente. Tudo tende a fazer pensar que o aumento da criminalidade se produz na proporção direta da diminuição da influência religiosa na escola e na família.
Daí procede que o único remédio eficaz seria renunciar a esta obra de laicização (assim se diz hoje), da qual nossos políticos se mostram tão orgulhosos, que a consideram como um título honorífico para si. Muito tempo transcorrerá antes de os acontecimentos os convencerem.
Mas a natureza não se cansa de obter os mesmos efeitos das mesmas causas, e esta repetição acaba por fim por iluminar as inteligências. Veremos também realizar-se o regresso à Igreja, predito também por Balzac no mesmo prefácio: “O Cristianismo criou os povos modernos e os conservará. Fora deste meio, todos os esforços para melhorar a moralidade juvenil serão inúteis”.
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*Publicado na Revista "A Cruz", de 29 de abril de 1928, n. 18 p. 4.

domingo, 21 de janeiro de 2018

TUDO EM CORÇÃO É AMOR

“(...) tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor. O que parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das grandes e generosas procelas. Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das esquerdas: - o Corção tem um coração atormentado e puro de menino”.
*****
Nelson RODRIGUES (1912-1980). Tudo em Corção é amor. In. O Óbvio Ululante, Livraria Eldorado Editora, 1968, pp. 164-166.

Para ler a crônica na integra: http://permanencia.org.br/drupal/node/68


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

ALEGRIA, AGONIA

As alegrias da vida são fecundas e eternas. Não passam como sombra leve, conforme se tem dito. O conceito dantesco é equivoco.

“...Nessun maggior dolore
Qui ricordarsi del tempo Felice
Nella Miseria...”

A imaginação é que produz esse efeito ilusório de recrudescimento da dor presente à recordação da alegria passada. Em verdade a alegria passada está sendo, na dor presente, subjacente substancia de vida e  ser. Nenhuma alegria vivida jamais morreu. Para que uma alegria morresse, fora necessário que nosso espírito se confundisse com os inumeráveis momentos sucessivos de nossa vida. Não se confunde, porém. É energia diferente, que absorve, no entanto, um por um, tais momentos inumeráveis, integrando-os, um a um, no seu presente perpétuo.
Nós somos, a cada instante, a totalidade do que fomos.
Nada em verdade, “passou” em nós. Recordação é a face imaginativa apenas (imaginação pertence ao corpo, à matéria) da perpetua presença de um momento que passou para a matéria mas não passou para o espírito. Que passou “no tempo”, mas não passou “no intemporal” que existe em nós.
Não resta dúvida, porém, que as alegrias da vida se erguem, como píncaros, sobre um fundo de perene agonia. Da agonia inerente ao ser participado. As dores da vida são apenas instantes em que essa perene agonia se alteia em onda forte a um toque mais vivo do efêmero, acentuando em nosso ser participado a distância a que está do ser absoluto e eterno.
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Tasso da SILVEIRA. Artigo publicado na Revista A Cruz, de 30 de março de 1951, n. 1829, p.3.

domingo, 14 de janeiro de 2018

A GRAÇA E O SOL

Ah! Como a verdade brilha através destas pesadas nuvens de confusão e incertezas irradiando a luz meridiana da esperança! Muitos, porém, não a vêm, muitos não a querem reconhecer. Levados pelo nosso zelo apostólico, pela caridade fraterna, não nos riamos deles, não os desdenhemos; talvez, coitados, ainda não lhes tenha chegado o momento da graça, a hora do Senhor. E nós sabemos pela Verdade eterna que sem Deus nada nos é possível: Deus é a força do corpo, Deus é a luz da inteligência, Deus é a vida da alma, Deus é o sol eterno.
Suponhamos que não existisse o sol. A terra que dele recebe toda a fecundidade, toda a beleza, toda a alegria, seria deserta, nua, tenebrosa, um astro sombrio errante pelo espaço. Que há de vivo sobre a face da terra cuja existência não se deva atribuir ou tornar dependente dos raios benfazejos do astro rei?
Nasce a planta, o animal, o homem sob o influxo dos raios solares; já existentes estes seres vivos ainda necessitam do sol para a sua manutenção, para a vida.
A planta cresce distendendo seus verdejantes braços numa ansiedade do espaço, abrindo suas corolas de policromismo perfumado a embalsamar a brisa da tarde que lhe agita a copa; a planta cresce sazonando os dourados pomos, abrigando garridos bandos de colibris mimosos; mas a planta cresce porque sente correr-lhe nas veias a seiva ardente. Deixai enregelar este sangue fecundo: ei-lo um simples espectro de arvore; ei-la de corpo esquelético e nu, de ramos tristes e fantasmagóricos erguidos ao ar; ei-la afugentando para bem longe as aves amigas que lhe demandam um pouco de sombra, um pouco de abrigo; ei-la cadavérica, envolta no seu alvo mento de neve a suplicar um raio de sol primaveril que novamente a desperte, que novamente aqueça seu coração e faça sorrir os verdes botões, abrir as tenras folhas, dourar os suculentos frutos.
No mundo da fé também encontramos um astro rei que o alimenta e vivifica, que o faz alegre e o torna feliz – é a graça.
A alma sob a ação da graça é jardim onde sorri a humilde violeta, desabotoa de verde nó o cândido lírio, exala suave perfume a rosa da oração; a caridade germina sazonados frutos, os próprios espinhos parecem transformados em flores porque a graça faz das lágrimas pérolas de celeste alegria.
Ditosa a alma que possui a graça... Vida não lhe falta porque Jesus nela tem sua morada; a alegria da paz de consciência faz esquecer todas as tristezas e dificuldades da vida; a verdade da fé ilumina-lhe a inteligência; e a ansiedade de assemelhar-se a Jesus, faz sorrir a própria dor.
Mas é noite sem manhã, é dia sem sol, a alma daquele que perdeu a graça de Deus, e sem ela não sente o calor e a luz da fé. Falta-lhe a seiva, falta-lhe a vida. Se sorri, são abrolhos de espinhos os seus risos; se chora, são lágrimas desesperadas os seus prantos; se germina, são peçonhentas flores de tristeza, indigência e morte os seus renovos.
Almas ditosas que tendes fé, guardai este tesouro precioso com cuidado; defendei-o da ambição dos inimigos; conservai-o que nele está a vossa alegria, a vossa vida o eterno rendimento dos vossos trabalhos e dores. Não sejais, porém, egoístas, compadecei-vos dos pobres que morrem à mingua de luz, enregelados pelo firo da indiferença em noite continua; estendei-lhes a vossa mão misericordiosa e deixai cair em seus corações um raio de luz, uma emanação de calor uma onda de seiva de vida divina, uma migalha de fé. Sede generosos com vossos irmãos como Deus o foi convosco. “Quem dá aos pobres empresa a Deus.
Recife, 15-VIII-1893.
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José TORRES. Idéias transformistas. Revista A Ordem, Setembro-Outubro de 1933, n. 40, p. 720-721. 

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

PEQUENAS GOTAS...

Mais um dia Senhor, vai começar agora para nós.
Mais um dia vai escorrer das tuas mãos eternas como aqueles sete primeiros, de que fala o Gênesis.
E nós mesmos, Senhor, que somos nós, senão pequenas gotas, ainda presas às tuas mãos, gotas em que se reflete todo o universo, em que se reflete a tua Face?! Pois se retirasses, Senhor, as tuas mãos, cairíamos todos no nada, no nada de onde nos tiraste, de onde nos tiras a cada instante....
Se retirasses, Senhor, a tua mão, voltaria ao pó de que foi tirado aquele que está falando, voltaria ao pó aquele que está ouvindo, e estalar-se-ia – corda partida de instrumento – a cadeia de vibrações que os liga, esta breve manhã, pelo teu longo espaço.
Teus, Senhor, são os dias; tuas, as horas; tuas, as nossas vidas, que por ambos deslizam.
Mais eis, Senhor, que vão começar dentro em pouco as horas roubadas, e as vidas roubadas também. Pois eis que vamos começar em breve a esquecer-te na faina do dia, ou, que sabe mesmo, renegar-te?
Esquecer-te, Senhor, será mister, pois não temos a força de continuamente fitar-te, de continuamente ver-te a Face nas faces que vamos encontrar, que ao nosso lado já cruzam...
Mas renegar-te, Senhor, eis o que é duro. Surpreender-te no olhar que implora uma palavra, e não ter a coragem de um gesto, – eis, Senhor, o que é terrível; eis, Senhor, o que um dia nos será cobrado por ti, que nos sustentas agora nas tuas mãos, pobres gotas que somos.
Quantos, Senhor, não se esqueceram da sua origem e não se encheram de ar, bolhas ridículas, ao sabor do vento?
Mas a nós, Senhor, que ainda conhecemos o calor da tua palma, guarda-nos na tua mão. De onde nos podes livremente deixar tombar, mas onde nos podes, também livremente reter, para as pérolas da tua coroa...
E há gotas, Senhor, translucidas, retiradas – ai de nós! – do nosso contato, e que já introduziste no teu celeiro celeste ou purificas ainda em benfazeja chama.
São os santos que iremos celebrar no dia primeiro, ou as almas por que iremos rezar no dia dois de novembro.
Mas entre essas todas, que gota mais diáfana e pura, que aquela que fizeste um dia subir da terra ao teu encontro em lúcida assunção?
Gota pequena aquela, que trazia no seu nome o mar, e que trouxera, no seu seio cristalino, o próprio Deus dos mares e das gotas...
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D. Marcos BARBOSA (1915-1997). Crônica publicada na Revista A Ordem, Novembro-Dezembro de 1950, n. 5-6, pp. 303-304.


CONSUBSTANCIAÇÃO

Augusto Frederico Schmidt*

Agora que eu passei tanto tempo distante
Vejo de novo o céu, abrindo-se, e o sorriso
Da aurora a caminhar sobre a relva molhada.

Altos tempos, Senhor!
Oh! o trigo vai florir!
Da semente esmagada
o ouro infantil
o ouro bom
descerá substancioso
E Cristo vai tomar
Formas elementares
E Cristo vai vestir as roupagens singelas.

As criancinhas vão receber Jesus, vestidinhas de branco!

Os ventos da noite estão longe
O sol enche de amor a manhã alta e enorme.
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*Publicado na Revista Vida, n. 2, maio de 1934, p. 7.