terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

O MONOPÓLIO DA EDUCAÇÃO PELO ESTADO


Pe. Leonardo CASTELLANI (1899-1981)*.

Centralização significa a absorção de toda a atividade dos corpos intermediários e mesmo dos indivíduos pelo Estado. Esta absorção cresce desde a famosa francesada de 1789 até hoje, de modo que é possível dizer que hoje todos os Estados são tiranias. O maior ladrão de qualquer Estado é o Governo. O publicista Bertrand de Jouvenel, em seu denso tratado O Poder, compreende que essa absorção é inevitável no Estado; que o agigantar-se é essencial ao Estado. Deveria ter acrescentado a condicionante: a menos que outro não o impeça. Com efeito, a função natural dos poderes parciais e relativos (Família, Município, Grêmio, Dinheiro, Universidade, Exército) é limitar o poder, em si açambarcador, do Poder Central.
Hoje em dia o Estado faz de tudo, menos, às vezes, o que deveria fazer. De sapateiro a construtor de casas, o Estado se mete em tudo... Você não pode publicar um livro sem ter o Fisco em cima. O Fisco sangra toda a atividade produtiva e inclusive monopoliza a maior parte das atividades produtivas.
Mas onde o Estado se mostra mais zeloso e por isso mesmo mais danoso é no Monopólio do Ensino. O Estado é o mestre de part Dieu – que digo? -, é o Mestre dos Mestres, o Mestríssimo. Direta ou indiretamente é o que transmite a - chamemo-la assim – Educação, diretamente nas escolas ‘publicas’, indiretamente nas escolas mal chamadas ‘privadas’.
Esta aberração de o “Político” se meter a reger ou a fazer o que não lhe corresponde, sem aptidão, nós copiamos da Terceira República francesa e esta copiou de Juliano, o Apostata, com o fim de perseguir a Religião. Napoleão também o fez, mas com fim diverso. É o dogma mais acariciado do futuro Estado socialista e é o credo do Anticristo. Os pais têm o dever e o direito de educar seus filhos; a Igreja tem a missão de ensinar a religião. O Estado é político e não educador, a não ser para subjugar a educação à política, e nesse caso, à infidelidade. “Greve dos trabalhadores da Educação”. Este enunciado grotesco é a criada marota que se tornou como que a divisa do Estado Educador. Está acontecendo aqui o se passou na França, a saber: o Estado Anticlerical fundou a Escola Normal Superior, que devia forjar todos os mestres superiores, e reservou para si o poder de habilitar os mestres comuns. Queria fazer dos educadores os “soldados da República”, como se expressou Jules Ferry, ou seja, aqueles que inocularam nas crianças indefesas o laicismo e o anticlericalismo.
Com efeito, como resultado lógico ocorreu que os mestres se fizeram comunistas, e começaram a dar dor de cabeça à ‘República laica, una e indivisível’, com greve atrás de greve começando por pedir ‘aumentos de salário’...
Quando o dano ou o escândalo se torna intolerável, o Governo cede e aumenta os salários e os trabalhadores da Educação se reintegram ao trabalho de educar, depois de haver dado o mau exemplo de deseducar. ‘Os soldados da República’.
Aqui neste país, o monopólio da educação é responsável pela decadência da educação; e a decadência da educação é responsável, em grande parte, pela decadência da República.
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*Prólogo ao livro Nociones de comunismo para católicos, de Enrique Elizalde, In. Seis Ensayos y Tres Cartas, Buenos Aires: Ediciones Dictio, Buenos Aires, 1973, p. 142-144.


O PAPEL DO ESTADO EM MATÉRIA DE EDUCAÇÃO


Revista A Cruz, 22 de abril de 1928.
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Há um axioma antigo de pedagogia, segundo o qual os doentes devem repetir aos alunos os princípios já ensinados, por que, assim, a força de ouvi-los amiúde, vinguem facilmente gravá-los na memória ou assimilá-los na inteligência.
Também o Mestre Supremo e Infalível da Verdade, uma vez por outra, se utiliza deste recurso de método, como meio de defender e guardar inalterada a ortodoxia da fé. Foi o que aconteceu, agora, na audiência ao Conselho dos Homens Católicos, de Roma, diante dos quais Pio XI acaba de lembrar a existência de dois princípios, desde muito normativos da consciência do mundo cristão.
O primeiro é o de caber aos pais e não ao Estado, o dever de dar educação aos filhos, obrigação esta inerente ao pátrio poder que os chefes de família devem cumprir em harmonia com os interesses da sociedade. O segundo é a competência exclusiva da Igreja no tocante ao ensino religioso, quer ministrado em forma de homilia, quer de modo catequético à infância.
Se quanto à ultima destas afirmações do Soberano Pontífice, ninguém há capaz de fazer reservas bem fundadas, o mesmo não se dá em relação à primeiro, à qual muitos opõem uma tese contrária.
O papel do Estado em matéria de educação é de mera assistência, em que exerce apenas uma função suplementar, por delegação tácita dos pais. Daí a exorbitância dos poderes públicos, ao se arregrarem o direito de dar uma instrução em desacordo com os sentimentos religiosos das famílias; daí a escola leiga, ou melhor, a escola sem Deus, tudo sendo consequência natural, de uma tese que ora se generaliza.
Contra este cerceamento de um direito natural, que os pais não podem abdicar de todo, sem faltar à sua missão social, os premune a Sentinela Vigilante da Igreja de Jesus Cristo.
E era necessário fazê-lo; porque, se os chefes de família católicos, da Alemanha, acabam de fazer diante do Reichstag, uma denodada e edificante reivindicação, ao se tratar, ali, do problema escolar, o indiferentismo de muitos outros vai comprometendo, em outros países, as crenças das futuras gerações.
Infelizmente entre nós, os governos agem sempre discricionariamente quando tratam de um assunto como este, de tanto interesse para a família.
O ensino leigo ou monopolizado pelo Estado é uma das armas mais perigosas manejadas pelos inimigos da nossa fé.
Contra ela, foi que se levantou, agora, a voz de Pio XI, em aviso prudente e sábio ao Conselho dos Homens Católicos, em Roma, voz cuja ressonância Deus queira impressione também os tímpanos dos que nos leem.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

PELA MORAL

“Só a educação moral da juventude, baseada nos princípios sólidos da religião, poderá livrar a família e a sociedade da corrupção dos costumes. Sem os princípios religiosos, que constituem a garantia da moralidade nacional, muito precário, e de resultados efêmeros, há de ser qualquer esforço contra os desregramentos da vida.
Os males que deploramos são consequências muito lógicas do ensino leigo e da educação sem Deus. As crianças não aprendem mais pelo catecismo, que foi varrido das escolas como coisa inútil e até prejudicial à liberdade de pensamento. Os filhos gozam hoje na família de uma independência, que nunca tiveram na sociedade os nossos antepassados. O princípio de autoridade, menosprezado e amesquinhado na vida pública, também vai desaparecendo do lar doméstico onde os pais são desrespeitados por questiúnculas insignificantes. A chave de trinco no bolso do menino que chegou à puberdade é a porta aberta a todos os vícios, e o passaporte da vadiagem desenfreada e livre”.
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Pe. R. Costa Rego. Revista A Cruz, n.2, 1919.


O GOSTO DA INVISIBILIDADE E DA INTERIORIDADE

Gustavo Corção (1896-1978)

A vida interior, a vida da alma e a vida da família entre quatro paredes vai perdendo dia a dia a sua organicidade, e vai cedendo terreno à vida devastadora das ruas. Faz-se hoje tudo em público. Desde o sorvete lambido nas calçadas de Copacabana pelo indivíduo de blusão azul, que anda com um ar bonzão e felizardo de quem acabou de se aliviar, até as mais extremadas manifestações amorosas dos casais curados dos antigos preconceitos pela moderna psiquiatria, tudo hoje tende a tornar-se público e ostensivo.
Eu diria, citando mais uma vez Gertrud Von Le Fort, que o mundo moderno precisa de um véu, símbolo do invisível e paciente mundo feminino. Mas com essa idéia de reclamar o véu, eu não quero dizer simplesmente que se deva apenas promover uma campanha para conseguir que as mulheres se vistam com mais modéstia. [...]
Mas a idéia do véu, como vitamina mulheril para o escorbuto de nosso tempo, deve ser compreendida de um modo mais geral. Não é somente o corpo que urge velar, é a própria vida íntima, o próprio coração. E não é somente nas pessoas, uma por uma, que se aplica essa dieta, mas na própria civilização.
O homem moderno precisa efetivamente recuperar o gosto da invisibilidade e da interioridade. Se há na vida das cidades uma atividade pública, e se há na vida da Igreja um culto visível e público, é preciso que a essas coisas corresponda uma componente de vida interior, na família e na alma. 
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Trecho do livro As Fronteiras da Técnica,  Rio de Janeiro: Agir, 1955. *Título original: A vocação da mulher.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A ESCOLA

Com o primeiro filho, constitui-se na família uma nova sociedade - a sociedade parental ou paterna - que não é outra coisa senão a extensão e o complemento natural do matrimônio. Daí a obrigação gravíssima dos pais educarem seus filhos, educação que há de ser física, intelectual e moral, consoante a natureza humana. Esta obrigação importa um direito inalienável dos pais sobre os filhos, direito que não é propriedade, mas consiste na autoridade única e exclusiva de educação. Dessarte, não deve Estado imiscuir-se em coisas de educação, cumprindo-lhe apenas o dever de auxílio ou subsídio às famílias, no que diz respeito à instrução da mocidade. Sejam os pais zelosos das suas prerrogativas naturais, mas convém não esquecerem que, antes de qualquer direito, existe o dever positivo ou natural, donde se origina o mesmo direito. Antes do direito está a lei. E a lei natural impõe sobre os pais uma série de compromissos, que bem se resumem na arte de educar os filhos. Educar um filho é cuidar atentamente dele desde o seu nascimento até a sua maioridade; defendê-lo de qualquer acidente corporal ou espiritual; desenvolver nele o vigor físico, o espírito de iniciativa, o sentimento de responsabilidade; inspirar-lhe amor ao trabalho, afeição à família, dedicação à pátria, estimulá-lo para o bem próprio e comum - baseando todo esse trabalho magnífico no santo temor de Deus, que é o princípio da sabedoria. A educação há de ser cristã, católica aliás, para evitarmos equivocações. Não basta esse cristianismo suspeito, de que fazem praça os hereges protestantes, e que diminui, ou destrói o santo temor de Deus. Nem se devem contentar os pais com a moral bastarda, chamada independente ou leiga, isto é, sem Deus. "Moral sem Deus - dizia Napoleão -, justiça sem tribunais". Formar bons católicos, preparar cidadãos úteis à religião e à pátria é em que devem se ocupar principalmente os pais. E aqui vem a talho a recomendação oportuníssima e necessária que fazemos aos pais para mandarem os seus filhos ao catecismo, máxime se frequentarem as escolas públicas, onde não há o ensino oficial da religião. Não podem descansar os pais, descuidando desta obrigação. A melhor consolação para os pais na hora da morte será o terem cumprido este dever. "Eu morro contente - dizia à família, nos seus últimos momentos, Bussen, político e notável homem de letras - eu morro contente: neste momento solene para mim, minha maior consolação é ter procurado com todas as minhas forças, fazer amar e adorar Jesus Cristo".   
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*Artigo publicado na Revista A Cruz, Ano II, n. 1, Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1920.

O CARNAVAL E A FAMÍLIA

Carlos de Laet (1847-1927)*

O carnaval!
Sabe-se o que costuma ser o carnaval: uma série de extravagancias que não se contenta com o tríduo anterior à quaresma, porém, muito antes, se faz sentir, e se prolonga e reproduz no fim da Semana Santa.
O “culto de Momo” como se diz com rançosa mitologice, de tal forma impressiona até os governos que, quando chove durante os dias carnavalescos, gravemente se providencia para a alteração do calendário, e transferidas são as maluquices e orgias para dentro da época penitencial da Igreja Católica.
Os jornais pejam-se, antecipadamente, de versalhadas e artigos asnáticos, condimentados de sal beócio e, não raros, grosseiramente lascivos.
Assoalha-se que o carnaval é a legítima expressão do espírito nacional; mas a julgarem por tais amostras, bem triste ideia devem de nós fazer os estrangeiros cultos e sensatos aqui domiciliados.
Aturdidos por tal grita, veem-se os governos coagidos a lançar mãos dos dinheiros públicos, para subvencionar disparates carnavalescos, e destarte assistimos uma coisa verdadeiramente incrível: - a opressão das classes pobres acabrunhadas sob impostos, ao passo que, com mãos largas, se espalha dinheiro entre foliões e meretrizes.
Na época da decadência da Roma paga, aos tiranos pediam as turbas “panem et circenses”, pão e divertimentos de circo. Agora à metade fica reduzido: teremos carnaval nas ruas, mas faltando pão em casa...
O pior de tudo é que, pelo contágio do exemplo, o carnaval parece ter invadido o lar doméstico até sobre pessoas que, pela sua posição social e suas virtudes cívicas e privadas, se tornam dignas do respeito geral.
Atraídos pelo bulício e aloucamento popular, várias senhoritas, da nossa melhor sociedade, já nas folganças carnavalescas teem arriscado a fantasiar-se e sair à rua, em carros enfeitados na companhia aliás dos pais ou parentes, para assim tomarem parte na ruidosa diversão. É isto uma praxe inocente e lícita? -   perguntam-me alguns curiosos. Admiro a pergunta e sinto a necessidade de uma resposta pública.
Vou, para isto, formular a questão em outros termos. Será licito, a uma família honrada, e principalmente no que nela existe de mais recatado, isto é, a virginal pureza das meninas frequentar lugares onde a inocência se acotovele com o meretrício, a candura d’alma com os excessos impudicos das multidões, o decoro do lar doméstico com o vozear de indecências e a exibição de carnalidades prostituídas?
Que algumas meninas, joviais e travessas desejam ir a festejos públicos, espetaculosos e brilhantes, desconhecendo-lhes a malicia, o concedo e admito mas que haja pais, marido ou irmãos que, conscientes do perigo, lhes submetam a mentalidade e o coração de inocentes criaturas, inoculando-lhes o gemem do vício – eis o que, em verdade me custa compreender.
Quereis divertir a família nesses dias de loucura popular? Diverti-vos, brincai, gracejai, em família, entre damas, senhorinhas e cavalheiros bem educados. Mas levardes meninas, isto é, mulheres que estão saindo da infância, aos imoralíssimos espetáculos da embriaguez e da impudicícia, faze-las passear por entre foliões semi-bebados e hetairas alugadas para a exposição do impudor; borrifar de lama a alvura do lírio; dar a espíritos sem mácula uma tremenda lição de coisas e das coisas mais maculadas e sórdidas: seria mais do que toleima, porque fora o suicídio da família.
Dir-me-eis que, isoladas em seus carros e automóveis, as senhorinhas evitariam todo o contato ignóbil... Mas acaso podereis evitar que aos castos ouvidos lhes chegasse o vozeio das cantigas torpes? Ou que pelos olhos lhes entrasse a visão das calculadas nudezas das cortesãs? Tanto vos custa em dinheiro e, o que mais é, em cuidados a educação cristã de vossas filhas – e tudo ireis perder pela imprudência de alguns dias! É inconcebível.
Atravessamos – todos os sentem, uma quadra de agitações e distúrbios, consectário fatal da corrupção dos costumes. O pior não é que o vento revolucionário sacuda o edifício social, e sim que esteja bichado o travejamento.
Pois bem! Que ao menos a ruína não atinja o lar doméstico!
Salvemos a santidade da família.
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* De Carlos de Laet disse um bom autor: “Carlos de Laet, o nosso Chesterton, era o florete habilíssimo que desmontava as melhores lâminas, levando de vencida os sofismas da época à força da mais demolidora das ironias, cuja grande arma era pôr de seu lado a troça”. Entre suas obras destacam-se: Poesias (1873); Antologia nacional, em colaboração com Fausto Barreto (1895); A descoberta do Brasil (1900); Heresia protestante, polêmica com o pastor Álvaro Reis (1907).

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

PARA QUE TUDO MELHORE

Gustave Thibon

Ser otimista ou pessimista ante a realidade da vida é uma alternativa sem sentido, porque não existem nem o bem nem o mal absolutos. Sempre há margem para melhorar a condição do homem.
Faz pouco tempo, em Nova York, depois de uma conferência sobre o tema do mal no mundo, um dos assistentes me perguntou boquiaberto: "Em definitivo, você é otimista ou pessimista?". Lhe respondi que esta pergunta não tinha sentido e que não se tratava de ser otimista ou pessimista a priori, senão de ver o bem e o mal onde estão e tal como são, e sobretudo, trabalhar para vencer o mal com a força do bem.
Há um otimismo e um pessimismo tão vulgares e irrefletidos, porque julgam o mundo desde nossa situação pessoal de momento. Si alguém está alegre, vê tudo cor de rosa ao seu redor; e quando surge a menor contrariedade, tudo lhe parece escuro. Bernanos dizia que o otimista é um imbecil alegre e o pessimista um imbecil triste.
- Um único erro: Estes dois erros opostos procedem de uma ausência de lucidez e do pecado de tudo ser colocado em relação a um. Por isso ocorrem tão facilmente em um mesmo indivíduo.
Conheço um homem que gozou durante muito tempo de uma magnífica saúde ao passo que seus negócios andavam de vento em polpa. "A vida é bela", proclamava continuamente. Todos os enfermos lhe pareciam murmuradores e todos os desafortunados nada mais que incapazes. Mas um dia conheceu ele mesmo a enfermidade e as dificuldades materiais. Caiu então em um pessimismo absurdo, repetindo sem cessar que o mundo é mal e que a vida não vale a pena ser vivida.
Esta mudança de óptica se explica sem dificuldade. O homem que, agarrado apenas a si mesmo, a sua própria sorte, permanece cego e insensível aos males dos outros, se encontra desamparado no momento em que a dificuldade se abate sobre ele: acaba aprisionado por esse mal que não havia sabido ver nem prever.
Assim, depois de viver cego pela comodidade ao ponto de não ver o mal que o rodeia, o homem continua cego para entender a desgraça até o ponto de não ver os bens que lhe restam. Porque aqui embaixo, no âmbito temporal, não há mal absoluto: seja qual for nossa prova, sempre conservamos algo - a saúde física, recursos materiais, o carinho de nossos amigos mais próximos...- e se perdemos tudo, ainda resta a esperança em Deus e na vida eterna.
- Paz interior: Não esqueçamos, com efeito, que nossa paz interior depende menos dos acontecimentos, que da interpretação deles; segundo a postura que tomemos, a pior catástrofe pode ser para nós causa de desespero ou motivo de esperança.
Penso neste momento em dois homens de minha região que, durante a segunda guerra mundial, foram enviados ao mesmo campo de concentração. Um era crente e o outro ateu. O primeiro, desacorçoado pela prova, perdeu a fé; o segundo, fortalecido pelo sacrifício, voltou a religião.

Seguindo esta linha de raciocínio, se desfaz o falso problema de otimismo e pessimismo. É igualmente absurdo dizer que tudo vai bem ou que tudo vai mal: o que nos é pedido é lutar sem descanso para que tudo melhore.
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CARTA AOS PAIS

Esta carta de ANDRÉ CHARLIER (1895-1971) merece ser lida duas vezes. Uma, por seu conteúdo e oportunidade; Outra, tendo-se em vista a data em que foi escrita, 22 de outubro de 1954, quando Charlier era diretor da escola preparatória de Clères, na Normandia. Embora escrita para pais franceses, estas breves reflexões certamente interessarão ao leitor brasileiro.

Prezados amigos, escrevi há muitos anos "cartas aos pais", e parei de escrevê-las, uma vez que, no final, não via utilidade. Elas não persuadiam senão aqueles que já se encontravam persuadidos. Muitos me escreviam: “Como o sr. tem razão!”, mas não passavam desta aprovação platônica. Ora, tenho muito pouco tempo para escrever coisas inúteis. Se escrevo aos senhores hoje mais uma vez, é porque uma imperiosa necessidade me incita a isto. É preciso, de todo modo, que o homem ao qual os senhores confiaram a educação de seus filhos lhes diga o que pensa da juventude da França que cresce. Sua responsabilidade moral, como a minha, está empenhada e é preciso que aos senhores seja apresentada a realidade. O quadro que apresento é uma visão geral cujos elementos não foram tomados apenas do que pude constatar na escola. Do que tenho a lhes dizer, cada um aproveitará o que quiser ou puder.
O que me espanta mais, é o quanto esta juventude é pouco viril. E por que é assim? Porque, simplesmente, os senhores jamais exigiram nada dela. Os senhores apenas se preocuparam de que fossem felizes e realizaram todos os seus desejos; desde a primeira infância, os satisfizeram de todos os modos possíveis; como poderão querer que tenham a idéia de que, por um lado, a vida é difícil, que as coisas difíceis são as únicas que interessam e que, por outro lado, todas as alegrias se compram e mesmo que custam tanto mais caro quanto mais elevadas são? Tudo sempre lhes foi dado e eles julgam normal que tudo lhes seja dado, estimam mesmo que é seu direito; e como a cultura e a ciência não se comunicam por si mesmas, vêem nisso uma espécie de injustiça. Eles não estão longe de se considerarem vítimas, posto que o Latim e as matemáticas não entregam tão facilmente os seus segredos.
Isto é assim porque, na educação que os senhores lhes deram, eles sempre receberam tudo de graça. Os senhores foram vítimas da demagogia universal e do moderno liberalismo, que considera a autoridade um vestígio de tempos bárbaros. Os senhores repudiaram a autoridade; quiseram agradar seus filhos para serem amados: mas não serão mais amados do que nossos pais o foram e serão, talvez, menos estimados por seus próprios filhos quando estes tiverem idade para julgar. Pois não lhes ensinaram que tudo tem um preço e que as coisas de valor custam caro. Jamais tiveram necessidade de merecer os prazeres que lhes foram dados; jamais aprenderam a fazer coisas contrárias às suas vontades. Ora, não é coisa agradável, em si mesma, por exemplo, estudar as declinações do latim ou do alemão.
Quando eu era pequeno, aprendi a fazer sem discutir o que me era ordenado; prestaram-me, assim, um imenso serviço. Mas, seus filhos, como discutem tudo! Não param nunca de discutir! Nada parece agradável para eles. Julgam tudo à medida de seu prazer imediato. Não se surpreendam que não tenham nem obediência, nem disciplina, nem respeito, nem senso de dever. E mais: os senhores os cumularam a tal ponto, que não querem mais nada, e eu jamais vi coisa mais desoladora do que jovens sem vontade. A ausência de vontade é um estanho bem-estar.
Julgam que sou pessimista? Mas os professores que conheço me dizem precisamente o mesmo. Aliás, nas conversas que tive com os senhores, todos mostraram estar de acordo com o que disse, apenas esqueceram de aplicá-lo nas próprias casas. Os senhores não se dão conta de que se preocupam imensamente com tudo que diga respeito à saúde, alimentação, conforto, férias ― e também com os estudos, pois, no final, há o sacro-santo vestibular ― mas, e quanto à alma dos seus filhos, ela os preocupa? Enquanto aguardo que o respondam perante Deus, pergunto: Que homens os senhores darão à França?
Os senhores sabem, contudo, que a vida não é fácil. Seus encargos profissionais são cada vez mais pesados. Os senhores estão insensíveis para o quanto a França diminuiu-se politicamente no mundo, o quanto ela decepciona seus amigos estrangeiros por não trabalhar o bastante, por não saber governar sua casa, por ter perdido suas forças em discussões estéreis. Acreditam que uma geração sem alma livrará a França de seu mal? Pois estamos prestes a fabricar a geração mais medíocre que a França jamais conheceu, pois nossos filhos não sabem mais impor a si mesmos tarefas desagradáveis. Aliás, eles encontraram uma maneira fácil de escapar delas, que é a dos fracos: eles mentem. Mentem aos senhores, e os senhores não se dão conta. Quanto a mim, gasto um tempo precioso para descobrir suas mentiras. Jamais tive tanta dificuldade para estabelecer, em meu internato, uma atmosfera de lealdade. Não seria assim se os senhores tivessem comunicado o sentimento de que a regra nos ultrapassa e que a devemos respeitar. Mas, como os srs. são franceses — os franceses são anárquicos ― os srs. dão a eles, involuntariamente, o sentimento de que podemos burlar a regra. Para as saídas de domingo, fixei que se deveria voltar às 17 horas — pois a esta hora há, seja um estudo, seja um ofício na capela: mas cada domingo há alunos atrasados. Estabeleci como regra absoluta que os alunos não devem levar dinheiro com eles, mas os srs. lhes dão por trás de minhas costas, o que os instala na mentira e produz conseqüências por vezes muito graves.
Após nos ter confiado seus filhos, os srs. pararam de se preocupar com sua educação. Mas os senhores nos repassam a responsabilidade de fazer o que os srs. mesmos não têm a coragem de fazer. Os srs. abdicaram. Sei bem que, dada a atmosfera moral do mundo moderno, a tarefa dos pais, se a quiserem cumprir escrupulosamente, é uma tarefa quase heróica. Pois bem, é preciso tomá-la como tal, e não fugir dela. Ninguém os substituirá e, apesar de tudo, os senhores responderão por ela. Os srs. sabem o que se passa nas casas de educação, mesmo religiosas? Os educadores estão completamente impotentes: ocupam-se dos melhores e deixam a grande massa dos medíocres com sua mediocridade.
Somos aqui uns poucos que se põem a fazer uma tarefa que, hoje, ninguém mais quer fazer e que ninguém quer ajudar, sob nenhum ponto de vista. Portanto, não nos dê o desgosto de achar que, aquilo que arduamente fazemos de um lado, é freqüentemente desfeito por outro. Jamais foi tão difícil retomar o trabalho como este ano, após as férias, pois estas foram demasiado doces, prazerosas, confortáveis. E sobretudo, quando os srs. vierem aqui, abandonem a idéia de que estes pobres meninos devem ser, a todo preço, confortados do mal de serem internos com quilos de bombons, gordos desjejuns ou sei lá o que. Tento tratá-los como homens, e peço que acreditem: não é fácil. Ser homem não consiste em discutir e colocar tudo perpetuamente em discussão. Consiste em assumir responsabilidades corajosas e generosas em uma ordem que nos ultrapassa. Façam, pois, como eu. Acham que é heróico? Sejam, pois, heróis. Não há outra coisa a fazer.
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André Charlier, sua esposa Alice Charlier e suas filhas Marguerite e Anne-Marie, em Pullay em 1933. 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A QUARESMA

Padre Altamira Gomes de Paiva.

Intensos estudos se fazem para resolver os mistérios das forças físicas; profundas meditações, para encontrar a chave dos intrincados problemas da natureza; inteligências e energias humanas se empenham na descoberta dos tesouros escondidos da matéria. Magnífico o resultado de tantos suores! Surpreendentes o progresso no reino da matéria!
E para a alma? É lamentável a negligência! Doloroso de ver o pouco interesse em conhecer as necessidades da pobre alma! Nenhum cuidado para ajudá-la a conseguir o seu fim.
O mundo em tanto apreço, e a alma - abandonada; sobressaltos pela saúde do corpo, e pela da alma - indiferença cruel; para os caprichos e exigências da sociedade, multiplicam-se as solicitudes, e para a vida da alma - apatia quase completa.
A moleza da educação moderna, que pouco a pouco, mas eficazmente enfraquece os corações; ambiente mundo que invade, quase sem obstáculos, o lar doméstico; o desuso dos sacramentos e o hábito de nunca elevar uma prece ao trono de Deus; a participação dos espetáculos e cinemas, de onde não raras vezes, os sentimentos nobres e retos saem gravemente feridos; as leituras repletas de sútil veneno contra a fé e contra a pureza do coração - tudo concorre para completar a ruína da alma. O abalo moral é forte!
A corrente das seduções, impetuosa! O triunfo da carne e das paixões põe o homem fora de seu centro, obrigando-o a correr perdidamente pela estrada do prazer.
Quem o conduzirá ao bom caminho? Quem mostrar-lhe-á os perigos que o ameaçam, indicando-lhe ao mesmo tempo um meio reparador? Será sempre a Santa Igreja. Adotando o remédio inculcado pelo Divino Mestre, estabelece o tempo salutar da Quaresma; testemunha da decadência do espírito cristão, abranda o primitivo rigor, na esperança de conservar e fortificar o tênue fio de vida, que se romperia sob o influxo de uma tensão mais forte.
Uma insignificância o que de nós exige a Igreja, durante a quaresma: penitencia quase nula, privações mínimas, sacrifícios limitadíssimos; e, contudo, encontramos mil pretextos para evitarmos a sua lei, procuramos motivos para criticá-la e condená-la.
Desgostam-nos as pequenas dificuldades encerradas no atual preceito do jejum e abstinência.
As páginas sagradas, tanto do velho como do novo testamento, constantemente nos lembram a necessidade e a eficácia de prática tão salutar, pela qual muitas vezes foram obtidos de Deus favores sem número para os profetas e o perdão e misericórdia para grandes pecadores, como Davi e os ninivitas.
É uma das leis mais claramente estabelecidas na Sagrada Escritura: aqui lembrada qual meio eficaz para aplacar a ira de Deus irritado pelos pecados; mais adiante sugerida para fortificar-nos na conquista do céu; umas vezes proposta como freio de nossas paixões; outras vezes prescrita para o conseguimento de nosso fim.
A Igreja apenas determinou o modo e o tempo de uma lei formulada por Deus, nos livros santos, tão evidente e explicitamente.
Se os corações estivessem menos ofuscados pelo fumo das paixões e vaidades, e as inteligências mais livres das trevas da ignorância e da presunção, ver-se-ia melhor a prudência e sabedoria divinas que dirigem a Santa Igreja nas suas determinações.
Ouçamos humildes a sua voz, e entreguemo-nos generosos às santas práticas a quaresma; concedendo às nossas almas metade da dedicação empregada para o bem-estar do corpo permitamos em favor do negócio de nossas almas parte de tantas penas sofridas inutilmente na aquisição de tantas frivolidades.
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*Artigo publicado no Jornal A Cruz, n.12, de 22 de fevereiro de 1920.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

O MUNDO AUDIOVISUAL: UMA ARMA DE DEFORMAÇÃO

“O principal e inevitável perigo da TV é colocar imagens nas mentes das crianças e não ideias; é parar, pelo poder enganador da imaginação, o trabalho natural da inteligência: a abstração. Esse perigo de perversão da mente e da imaginação é muito mais profundo e muito mais difícil para os pais entenderem do que uma espetacular corrupção do sentido moral, que logo acompanhará o mau uso das imagens. O contato com as imagens, por sua vez, diminui a atenção, amolece a vontade, debilita a memória inchada de representações, impossibilita a retenção das articulações dos mais simples raciocínios”. 
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Luce Quenette. Balayez Astérix, in Itinéraires N. 160., février 19772, p. 17-18.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

A CADA DIA BASTA SUA PENA

Gustave Thibon (1903-2001)

O homem é o único ser vivo capaz de pensar e de prever o futuro. Este privilégio permite conceber e realizar projetos por meio dos quais - ao contrário do animal que vive no dia-a-dia sob a influência imediata dos seus instintos - o homem pode orientar e construir o seu próprio destino. A previsão é o motor do progresso.
Mas esta preciosa faculdade é também fonte de um número incalculável de ilusões e de sofrimentos.
Com efeito, muitos homens vivem de tal modo no futuro que se esquecem de saborear as alegrias ou de cumprir os deveres da hora presente. E isto, quer porque esperam do futuro uma felicidade ideal, que não é compatível com as condições da vida terrena, quer porque adiam para amanhã o cuidado de se corrigirem dos seus defeitos ou de tomarem certas decisões cuja urgência se faz sentir já hoje. Esquecem que o futuro é apenas um presente diferido e que, se hoje são incapazes de ser felizes e de realizar certos esforços, amanhã encontrar-se-ão com as mesmas limitações e as mesmas dificuldades, de tal modo que, deslocando as suas esperanças de amanhã em amanhã, acabarão por morrer sem nunca ter vivido. "O inferno está cheio de boas intenções" - diz um velho ditado... A mesma obsessão do futuro pode apresentar-se também sob a forma do medo e da angústia. Quantos homens agravam os seus males reais com a imaginação dos males possíveis e sofrem de antemão acontecimentos que talvez nunca venham a ocorrer! Estes terrores são geralmente tão ilusórios quanto as falsas esperanças, porque os males que nos atingem não são quase nunca aqueles que tínhamos previsto. Conheci um homem que vivia na obsessão do cancro; o menor mal-estar parecia-lhe um sintoma da terrível doença; via-se já destruído e condenado pela doença; por fim, acabou por morrer num acidente de automóvel, no qual nunca tinha pensado. Mas, entretanto, tinha estragado a sua vida na expectativa de males imaginários.
Responder-me-ão que há casos em que os males que se receiam não são imaginários e um homem que sofra, por exemplo, de uma doença grave, ou que defronte sérias dificuldades financeiras, tem razões muito legítimas para recear pelo futuro. Direi que tal fato é mais uma razão para não acrescentar á dor presente - que já é demasiado acabrunhante - o peso suplementar da dor futura. Vejamos o caso de um doente. O que o acabrunha e desanima é menos o seu sofrimento atual do que a imagem que cria para si mesmo do conjunto de males que talvez venha a sofrer e de perigos de que se sente ameaçado. "Que mais terei eu ainda para sofrer? Como vou sair disto tudo?" - pergunta a si mesmo. E sente-se esmagado por essa carga de provações futuras, que por agora só existem no seu espírito. Precisamos de aprender a aceitar as provações exatamente como elas nos são dadas, isto é a retalho, aos poucos e no dia-a-dia. "Qualquer que seja o teu sofrimento - dizia Marco Aurélio - podes sempre suportá-lo até ao minuto seguinte: ora, a vida é apenas uma sucessão de minutos". Também já foi dito que, se pusessem diante de um homem o conjunto dos alimentos que ele virá a consumir até ao fim dos seus dias (várias toneladas de pão, de carne, etc...), ele perderia imediatamente o apetite. E contudo, dia após dia, sem pensar nisso, o homem virá realmente a comer toda essa quantidade de alimentos...

"Não vos inquieteis a pensar no amanhã; a cada dia basta a sua pena" - diz-nos o Evangelho. O que nós temos de fazer não é sonhar o futuro, mas construí-lo mediante uma fidelidade sem quebra ao cumprimento das tarefas e dos deveres da hora presente.
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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

AS BODAS DE CANÁ

Tasso da Silveira*

Dos passos evangélicos iluminados pela presença da Virgem, sem dúvida o da Anunciação e o do Calvário se revestem de mais transcendente e misterioso sentido; mas o de mais tranquilizante e jubilosa significação para a nossa fraqueza humana e para nossa necessidade de amparo é o das bodas de Caná.
Ainda em meio da festa nupcial, a Virgem repara que se esgotou a bebida capitosa que faz a alegria das festas. E num interesse comovente, puramente humano, que, por assim dizer, a Jesus não ocorreria, disse Ela ao divino Filho: "Eles não têm mais vinho".
Jesus entende a sugestão delicada. Mas é com severidade e se diria até com uma ponta de irritação que responde: "Mulher, que há entre mim e ti? Ainda não chegou a minha hora!..."
Que podemos compreender por estas expressões?
Que desde toda a eternidade estava marcado o momento preciso em que o Salvador deveria abertamente mostrar-se aos homens como Deus, operando milagres. E o momento marcado não era aquele das bodas. O pedido da Virgem era ordem de mãe e foi assim que Jesus o entendeu. Mas vinha, essa ordem, alterar toda a economia dos eternos desígnios.
Daí aquela severidade irritada.
Não obstante isso tudo, a Virgem não perdeu sua confiante serenidade, e sem retrucar ao Filho disse de manso aos servos: "Fazei tudo que ele vos disser".
Com que ouvidos de mistério teria ouvido Jesus estas palavras que significavam a ordem reiterada, apesar do que Ele havia dito, e com que olhos de mistério teria visto os servos obedecerem ao que mandara a Senhora! Seja como for, também não discutiu nem insistiu: transformou a água em vinho.
Neste passo, mais que em qualquer outro, é que podemos perceber o poder intercessório da Virgem. No fim de contas Ela alcançou, nesse momento, falando do fundo de sua humanidade humílima, mas também do alto de sua autoridade de mãe de Deus, modificar a vontade absoluta do próprio Deus. Não sei se nos livros sagrados há referência a outro qualquer acontecimento dessa ordem.
Nas bodas de Caná o fato se verifica irrecusavelmente.
Assim, que é a Virgem sagrada para nós?
Em primeiro lugar, a muito humana, a humaníssima, capaz de compreender nossa mais pobre queixa, nosso mais ingênuo pedido, uma vez que não envolva impureza e soberba. Em segundo lugar, a que tudo pode junto do Filho eterno em favor nosso, a ponto de, se for preciso, quebrar, para atender-nos, o quadro das determinações absolutas da divindade.
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*Extraído do livro "Diálogo com as raízes – Jornal de fim de caminhada", fragmento datado de 28.4.1955.

O COLÓQUIO DAS CRUZES

Gustavo Corção*

O caso de Santa Maria Goretti, recentemente canonizada, é ainda mais convincente: converteu seu próprio assassino que chegou a assistir, velhinho, e já sacerdote, a primeira missa pontifical em honra da nova santa.
E, se deixarmos os nossos tempos, volvendo os olhos para os primeiros séculos de nossa era, a dificuldade está na escolha, tão abundantes são os casos de conversões instantâneas em torno do cadafalso.
Diante de todos esses exemplos, eu imagino que Nosso Senhor deseja nos mostrar, como aliás já o fez na parábola do publicano, que os ladrões, as prostitutas e os assassinos, estão muitas vezes mais próximos de Sua misericórdia do que o honesto cidadão que é saudado nas praças com respeito.
Além disso, dir-se-ia que corre nos céus um frêmito de recordações misteriosas cada vez que a pobre justiça humana arma no mundo a carpintaria de seu pronunciamento final.
Que estrado é este em que o martelo bate e o serrote canta, fora dos muros da cidade? Que poste é este, de forma tão esquisita, que estão firmando no chão?
A justiça humana é legítima; sua severidade é boa, é uma perfeição; porque a sociedade deve realizar seu próprio bem. Contudo, dir-se-ia que o simples fato de se armar um patíbulo produz no céu um alvoroço de anjos. Não era assim mesmo que o martelo batia e que o serrote cantava, naquele dia?
O próprio Senhor Jesus, sentado à direita do Pai, há de lembrar-se daquela noite única, quando vê um de seus irmãos acercar-se do patíbulo.
Era uma noite como não houve noite igual; uma noite metida à força, cunha de treva e de dor, na claridade do dia. A terra tremera e um crepe espesso caíra sobre o mundo. O Homem das Dores, náufrago das trevas, está suspenso no ar. Suspenso pelas chagas. Os discípulos fugiram; Pedro negara três vezes; e entre as sombras que se movem em baixo, esquivas e medrosas, mal se percebe o vulto ereto e imóvel da mãe dolorosa. O Homem das Dores está suspenso, puxado para cima, arrancado do chão, isolado, perdido no meio das trevas.
De repente ouve uma voz. Não vem do chão, pois os discípulos fugiram, a mãe dolorosa guarda o silêncio e os soldados de Roma murmuram palavras surdas que mal se distinguem. A voz que se ouve, isto é, que Ele ouve, vem do lado. Vem da mesma altura, da mesma treva, da mesma dor. E logo, do outro lado, outra voz. Entre a terra e o céu, começava o espantoso colóquio das cruzes.
Não é o Cristo? — dizia asperamente a primeira cruz — Salva-te então a ti mesmo e a nós.
Não tens o mesmo temor de Deus? — advertia a segunda cruz — Nós, é justo o que recebemos, e que merecemos por nossas faltas. Ele, porém, nada fez de mal.
E, depois de uma pausa, tornou a falar esta segunda cruz, dirigindo-se agora à do centro que ouvia em silêncio:
Lembrai-vos de mim Jesus, quando voltardes com toda a realeza!
E o Homem das Dores, no alto da cruz, entre o céu e a terra, náufrago da escuridão, ouvindo aquela voz de náufrago também, aquela voz de homem, de pecador, de penitente, de condenado, sentiu certamente — ouso imaginar — seu último frêmito de ternura humana lembrando-se dos outros, dos bons dias em que andara as estradas de Cesárea ouvindo vozes assim, de Pedro, de João, de André... Onde estão eles?...Naquele dia em que disputavam como crianças o melhor lugar no Reino dos Céus. E, naquele dia mais próximo em que Pedro jurara... Eram vozes assim, de homens, de irmãos, de filhos. E o Homem das Dores alegrou-se, certamente, ouvindo pela última vez, antes da ressurreição, no centro mesmo da sua paixão, a voz que na eternidade iria associar a idéia de cadafalso à lembrança dos curtos dias, dolorosos e felizes, em que a própria Sabedoria de Deus se deliciara de achar-se aqui, nesta terra, neste chão, brincando entre os filhos dos homens.
E ali mesmo, dentro da escuridão, no centro mesmo da dor, no alto da cruz, ex-cathedra, o Senhor Jesus canonizou em vida o bom ladrão: Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso.
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*Excerto da conferência sobre Santa Catarina de Sena, pronunciada no Centro Dom Vital em 30 de Abril de 1948 e publicada na Revista A Ordem, de Agosto do mesmo ano.



terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

DISPOSIÇAO AO SACRIFÍCIO

Fulton J. Sheen (1895-1979)
(Especial para a tribuna da Imprensa)*

Nunca houve, numa fase de tréguas como a que atravessamos (pois dificilmente chamaríamos de “pacíficos” os tempos em que vivemos)  tamanha disposição ao sacrifício como a que hoje se verifica. Esse espirito não se manifesta ainda abertamente, mas permanece escondido, como a água sob a superfície da terra.
A disposição ao sacrifício manifesta-se de duas maneiras: uma delas mórbida e masoquística, a outra sadia e louvável. O sintoma característico dessa primeira forma de sacrifício é a submissão ao totalitarismo por parte de cerca de um quarto dos povos da terra. O Comunismo oferece uma versão secular da doutrina cristã do sacrifício, proclamando que a abnegação, os expurgos, as eliminações, a violência da revolução são indispensáveis ao homem que quer encontrar uma nova forma de paraíso na terra. O Comunismo vem conseguindo um número avultado de adeptos – não porque sejam verdadeiros seus ensinamentos, senão porque os homens se cansaram de um Liberalismo morno para o qual nenhum erro era suficientemente corrompido para ser condenado e nenhuma causa bastante elevada para merecer uma dedicação integral. O comunismo procura preencher o vácuo deixado pelo abandono do sagrado preceito: “Toma a tua cruz e segue-me”.
Não impede que existam sintomas mais sadios desse desejo de sacrifício, traduzidos na ânsia da mocidade em encontrar algo de difícil e merecedor. Aqueles dentre eles que encontram uma causa a que servir, a ela se dedicam incansavelmente, enquanto a acreditam capaz de produzir algum benefício para a humanidade. Ante a objeção de que não poucos jovens de ambos os sexos voltam-se para anarquia social e a licenciosidade, eu contestaria não se tratar aqui de uma prova de fraqueza dessa mesma juventude, e nem tão pouco de sua rebelião contra a lei e a autoridade. Considero-a antes como um protesto contra a fraqueza de seus maiores, que temperaram a verdade com o erro, a virtude com o vício, e diluíram os elementos de drama da existência. O espirito revolucionário dos nossos moços é um protesto contra a impotência de seus maiores em lhes transmitirem valores puros e autênticos pelos quais valha a pena lutar; sua revolta é uma atitude de desprezo contra a barbaria passiva da sociedade em que nasceram. A devassidão em que mergulham é um ato de revolta contra o vazio da vida, vivida exclusivamente com finalidades egoísticas; a essa falta de sentido procuram compensar pela intensidade de suas experiências eróticas. Mesmo nas piores acusações da juventude é possível vislumbrar uma esperança: essa atitude revela a ambição por um destino mais elevado e uma vida de dedicação.
Certo período da história Romana apresenta semelhança com o nosso; a filosofia então geralmente aceita era o estoicismo, que tinha por lema: “Aperte os dentes e aguente”. Nos tempos atuais, outra filosofia, ainda menos satisfatória para o espírito humano que o Estoicismo romano, nasceu da crise das duas Guerras Mundiais. Surgiu primeiramente na Alemanha, depois da Primeira Grande Guerra, e na França, em nossos dias; é conhecida por Existencialismo.
O Existencialismo preparava os homens para o niilismo social, para a decadência da civilização; o Existencialismo impõe-lhes a aceitação de um niilismo interior, a decadência da personalidade humana apartada de Deus. Os filósofos existencialistas têm pelo menos o mérito de distinguirem claramente as duas supremas alternativas que propõem ao homem escolher: ou Deus, ou nada. Feita essa escolha, a criatura não pode continuar na mediocridade: ou bem deriva para a loucura e o suicídio, ou eleva-se até Deus através do sacrifício e da abnegação.
A grande maioria dos indivíduos de hoje – e em particular os jovens – acha-se preparada para essa caminhada para o alto; faltam-lhe os chefes capazes de conduzi-los. Estes, igualmente criados numa atmosfera de frouxidão e negligencia – que procurou amoldar à Cruz e suavizar-lhe as ásperas arestas para que estas deixassem de ferir – não se acham preparados para satisfazer os anseios mais profundos de uma humanidade sedenta de sobrenatural.
Observadores superficiais poderão tomar por líder popular aquele que faz belas e desinteressadas promessas – anos de férias com direito a remuneração, aposentadoria para os operários nos trinta anos eu vos direi no entanto que o futuro líder, capaz de conquistar realmente a imaginação de nossos compatriotas, será m homem com uma cruz às costas.
A época em que se embalavam os povos com promessas atinge o seu crepúsculo, substituída por apelos ao heroísmo, ao sacrifício e ao desprendimento. Multidões se aglomerarão ao lado daquele que oferecer aos homens algo mais digno de amor que a sua própria individualidade. Nos dias em que o progresso mecânico parecia assegurado, o Calvário parecia longínquo; numa era de adversidade como a nossa, ele se aproxima e passa a exercer  mais forte poder de atração. A América de hoje anseia por uma oportunidade de sacrificar interesses egoístas em prol de uma causa meritória. Se pudermos contar com chefes dispostos a imolar-se eles próprios em sacrifício por essas causas, tudo estará salvo. (Tradução de Maria Helena Amoroso Lima Senise)
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Publicado no Jornal Tribuna da Imprensa (dirigido por Carlos Lacerda), 1950, n. 37, p. 4.