sábado, 23 de dezembro de 2017

CANTO DO MISTÉRIO DO NATAL

Augusto Frederico Schmidt

Uma voz se levanta de repente,
Voz misteriosa e criadora,
Forma do próprio Espírito infinito
E ante essa voz, que vem do Tempo Eterno
Um mundo já perdido, na distância
Se liberta de súbito, e aparece
Próximo ao nosso olhar.
Próximo e esplendido
Na sua luminosa suavidade
 ***
E a voz é o próprio pensamento
Tocado pela graça
E a voz é a revelação
Do mundo redimido da miséria.
Do mundo onde não vinga a lei do Tempo.
Mundo em que as flores são eternas
Eternos os seus frutos
E as águas suas sempre vivas.
Mundo virginal, fecundo e inalterável.
***
No princípio era a Voz que nascia
E com a voz o Puro Pensamento,
E os clarões em que a Suprema Inteligência
Configurava o Destino insoldável dos seres.
No princípio era a Voz
Do abismo originária
E eco de uma outra voz – Filha do Verbo
Ordenador dos ritmos eternos
Fonte da Vida, fonte da Consciência
Fonte da Salvação e Eternidade.
***
No princípio era a Voz
E a voz surgindo, procurou a Vida
E a vida estava nas Estrelas do Céu
E na Estrela que anunciou aos tímidos pastores
O Incrível Acontecimento.
E a Voz se aproximou das simples coisas
Até onde se estendia a Graça eterna.
E a voz – recebeu os sons e os ruídos
Do Mundo,
Os risos das raparigas nos folguedos
O balir das ovelhas,
O mugido dos bois pacíficos e ungidos pela bondade rudimentar.
E a voz se uniu e recebeu o canto da pequena cidade
Como o mar recebe no seu seio fundo
As águas confusas e transidas do mundo.
***
E a Voz era o anúncio da vinda
Do que era o Equilíbrio e a Salvação
Entre as leis da Morte e do Desespero.
E a Voz era o sinal de que o Filho do Homem
Estendera para o futuro do mundo
As mãos e os pés para o castigo infamante.
E a voz, que era a Própria Vida, se transformou em música!
***
E vem do fundo misterioso da Noite de Natal,
Do fundo da longa noite lúcida e estranha de Natal
A grande música.
***
São sinos que tocam nas brumas invisíveis
São harpas que as asas dos Anjos fazem tremer
São soluções de crianças
São dores gloriosas
São bênçãos paternas cheias de frutos.
***
E vem do fundo sem termo da Noite de Natal
A música da transfiguração
E a música realiza o mistério
O mistério da Contemplação.
***
A hora é noturna.
O crepúsculo á fugiu há muito com as suas longas asas
E os braços da noite desceram silenciosamente sobre a terra.
****
Há uma candeia que o vento ao longe balança.
Há uma luz que tremula indecisa nos limites das trevas.
Há uma luz que resiste aos ventos e que resiste às chuvas.
***
A noite é cheia de Graça!
A noite é cheia de Harmonia!
****
Ó! Música do Céu e da terra dai-nos de novo, um instante ainda a contemplação do Acontecimento!
Dai-nos de novo, não emoção do Milagre
Não a poesia distante do símbolo
Não a pálida flor da nossa imaginação maravilhada.
Ó! Música nascida do Natal,
Dai-nos a Face, a nua e simples Face do Acontecimento.
Queremos ver tudo como tudo se realizou
Queremos ver de novo as pobres mãos de Maria
As pobres mãos brancas e castigadas das lides domésticas
Mãos maternas e pobres escurecidas pelo frio e o desconforto.
Queremos o olhar indizível do Lírio que o Eterno fecundou e fez frutificar.
***
Ó! Música, condutora da mão que escreve estas humílimas palavras.
Dai-nos a realidade incomparável
Dai-nos o choro inocente do Menino
Dai-nos as desconhecidas fisionomias dos Magos,
Dai-nos a visão maravilhosa da Estrela indicadora
Com a sua cauda e o seu brilho.
Dai-nos de novo, ó!  Música, a atmosfera que envolveu os personagens do Acontecimento.
***
Queremos as pobres e improvisadas cobertas
Os abrigos humildes que defenderam do inverno
O corpo intocado da Esposa do Eterno.
Queremos os objetos, as coisas mais pobres
A bilha de água das viagens ásperas,
As alpercatas de José, grande e doce José,
Tão natural e tão heroico na sua confiança e na sua pureza.
Queremos o bafo generoso dos bois que participaram da Hora Divina
Queremos o que se realizou, nos seus mais ínfimos detalhes.
Queremos a própria identidade de um viajante noturno
Que atravessou ingenuamente Belém adormecida
Que passou arrastando o bordão nas estradas
Em frente aos portais do estábulo
Na ora em que se encarnava o Unigênito
O Filho do Deus dos Desertos; do Deus Ordenador do Caos e iluminador dos Espaços.
***
A realidade do Natal, nós te pedimos ó! Música do Cristo Menino
A realidade nua, nós te pedimos para iluminar este mundo escuro
Ó! Momento do Milagre de Amor e do Sacrifício de Deus!
A realidade do instante em que o Acontecimento se verificou, nós te pedimos
Para que a Alegria e a Esperança de novo
Renovam o ar irrespirável que as nossas gerações hoje recebem
As nossas gerações distanciadas do Natal, como se tivessem chegado
Nas horas confusas do Velho Mundo, do Mundo sem redenção ainda preso ao pecado original como a terra às leis do Sol.
***
Natal! Natal!
Do fundo da Noite Primeira do Cristo – chega a Poesia redentora.
E do fundo do Tempo, que a estranha Presença libertou da Morte
Nos vem, ampla e profunda, a música perturbadora.
E com a música a cena – distante e intata.
***
Vamos ouvir e vamos olhar o povo de Israel, um instante
O inquieto e ansioso povo Escolhido, escolhido para o Sofrimento e para a Gloria.
Vamos ouvir e vamos olhar o povo incomparável
De onde nasceu a Negação e a Blasfêmia.
Vamos ouvir e vamos olhar o Povo Escolhido
O povo que não quis o Deus que os outros povos reconheceram e adoraram.
Vamos contemplar a imensa e triste arvore de David
Cheia de frutos estranhos, mas curvada para a morte.
A árvore enorme, mas habitada pelas desgraças.
Com as suas longas raízes bebendo os venenos ignorados de um rio subterrâneo e sem nome.
Vamos contemplar, a Face do Povo Judeu
E as fisionomias morenas e trágicas dos seus filhos
Vamos verificar a miséria da raça perseguida
Na hora em que Deus a visitou na Pessoa do seu Filho,
Do Cristo, concebido sem pecado de Maria.
Vamos olhar e vamos sentir a desgraça de Israel
Na hora última, no instante da escravidão
Quando o jugo estrangeiro já não provocava mais revoltas.
E o Messias era uma esperança inútil e sem desejo.
Vamos olhar os Filhos da Raça Eleita
Últimas espigas, espigas abandonadas que Ruth não recolheria da seara de Booz
Sinais apenas do grande trigal humano,
Da Raça que sofreu o Amor de Deus em toda a sua violência.
E que Deus premiou fazendo-se dessa mesma Raça!
Dessa Raça triste e que habita no erro ainda hoje
E até o momento, em que a Misericórdia imperativa o consentir.
***
Natal! Os sinos romanos, somente muito depois traduziriam.
A tua incrível poesia para o nosso entendimento!
Natal! Ó! Sinos do futuro, tão silenciosos ainda!
Eu vos ouço vibrar, sobre a pobreza do Presépio.
Ó! Sinos da Roma Vencida sinos ainda invisíveis.
Sinos em torres de Igrejas não construídas
Eu vos ouço, sonoros, cantando e abençoando
A pobre noite de Belém
A humilde noite de Belém.
A nua e tocante cena do nascimento do Filho dos viajantes sem pouso.
Sinos de ouro, sinos de bronze, velhos sinos
Sinos que iluminais as noites dos séculos
Sinos que desceis límpidos aos corações poluídos e sombrios.
Sinos da Igreja invencível
Eu vos estou ouvindo, vibrantes dentro da noite gloriosa
Em que as formas humanas, as pobres formas humanas,
As pobres formas de um menino frágil contiveram o próprio
Verbo que era levado sobre as águas nos dias primeiros.
***
Não direi, não conseguirei jamais dizer, com as minhas palavras
Como desejaria ardentemente, o Acontecimento do Natal.
Para falar dele, somente as simples expressões
As simples expressões de Marcos, de Mateus e de Lucas, são próprias
E nem João, porque, o próprio João era o Fogo, e o Espírito Puro.
E os outros, apenas, narradores da verdade, naturais e diretos 
Assim, não conseguirei amais falar do lar improvisado de José.
E da sua pobreza completa.
Porque o Milagre, a consciência e o conhecimento do Milagre
Alvoroçam a minha imaginação e a conduzem para o delírio.
Ao desejo de evocar o Natal no seu quadro doméstico
Sinto o tumulto, a grandiosidade, a sonoridade e o clarão do Mistério magnifico.
E os olhos cheios de susto
Vem os pastores acordados pelos Anjos
E vem Herodes pedindo aos Magos a confirmação e o sinal do Messias.
E vêm nos céus da humílima Belém,
O Espírito Santo.
***
Cristo nasceu! Nasceu o Messias, o Esperado e o Prometido
Na hora da perseguição, na hora da humilhação da Raça.
Na hora da hipocrisia, na hora de Pilatos, na hora da estupidez e da covardia, quando o Reino de Israel era uma sombra distante e impossível.
Na hora vil, entre todas as horas do povo judeu.
Na hora da adulação ao terrível Senhor do Império.
Na hora da frouxidão e da sombra.
Na hora da última queda, da descida ao chão de um povo que foi o escolhido; de um povo que teve um dia Moisés como condutor.
De um povo que teve Salomão e David.
De um povo que inspirou a poesia oleosa e trigueira do Cântico dos Cânticos
Com a sua Rosa Vermelha, e os seus ciprestes balançados pelos ventos
Foi, pois, na hora em que Judá se prostrava diante dos pés do César
Na hora em que a poeira descera sobre a antiga nobreza.
Sobre a raça altiva e dilacerada.
Foi na hora da Morte
Que o Menino chorou pela primeira vez com o seu pequeno corpo castigado pelo frio deste mundo
E então, Roma foi vencida
E o sinal da Cruz surgiu diante das tropas guerreiras
E Roma, plácida e sólida como um pomar na primavera,
E Roma madura no seu espírito
E harmoniosa nas suas formas, e a grande Roma que deu em Virgílio a medida, da sua harmonia e da sua clara maturidade.
E Roma, a Fecunda, campo de trigo sob os azuis céus abertos,
E Roma, a solida, somente se prolongou na eternidade com a sua influência decisiva e renovadora
E adquiriu as substancias indispensáveis à vida, no mundo que ia nascer e que é o nosso mundo
Isto só porque recebeu e guardou as palavras, a máscara piedosa e magnifica e o sangue
Do Menino, que nasceu em Belém!
***
Natal! Natal! Natal!...
Cantai Anjos a Glória do Natal
Cantai vozes em coro o Menino transido
Cantai estrelas nos céus noturnos
Cantai corações, em que a esperança revive e sempre se renova.
Cantai, ó! Alma ainda intocadas
Cantai, vozes maternas, vozes fecundas e enternecidas das criaturas que transmitiram a Criação.
E repetiram o sacrifício de Maria.
Cantai, santos e pobres,
Cantai, para acordar o mundo
Cantai para lembrar ao mundo o Acontecimento
Cantai, dentro da funda Noite, para defender a inocência
Cantai sobre os campos de batalha,
Sobre os ódios e as divisões destes tempos
Cantai para que se avivem e inquietem as memórias.
Cantai em defesa das crianças que estão nascendo nesta hora
Em todas as partes do mundo.
***
Que a Mensagem de Natal seja, nesta hora amarga,
Que a poesia de Natal seja neste instante de agonia e de tristeza
Transmitida com um heroísmo até aqui não conhecido.
Que a Mensagem de Natal, que a música do Nascimento redentor chegue até onde domina o silencio áspero dos Estados dos novos Césares
Que a Mensagem do Natal chegue até onde o Cristo é negado à infância.
Até onde a Face do Cristo é escondida às crianças,
Às crianças que O procuram, no entanto, sem saber sequer que O procuram
E que reconheceriam facilmente se O encontrassem,
Porque se sentiriam compreendidas e amparadas
Com a simples ação da sua presença incomparável.
***
Natal! Natal!
Passos perdidos na neve
Passos nas matas, nas cidades, nos campos em flor,
Sinos cantando o Natal
O Natal dos deserdados
O Natal dos solitários
O Natal dos que estão lutando nas trincheiras
O Natal dos que não aprenderam o nome do Cristo
O Natal dos que não têm esperanças
O Natal de todos os filhos destes tempos inquietos
O Natal sem bênçãos e o Natal sem alegrias
O Natal humílimo, e, o Natal da Hora da Agonia.
***
Descei – ó! Poesia impossível e intraduzível do Natal
Sobre a avidez e a insensibilidade desta hora incerta
Descei, ó! Imagem nua do Cristo recém-vindo do ventre imaculado.
Descei, ó! Espírito puríssimo do Natal.
Descei, sobre os nossos corações e sobre as nossas tristes cabeças
Descei como o sol quando desce sobre a terra
Descei para dar-nos o Coração do Cristo, o Coração acolhedor e Insubstituível do Cristo,
Sem o qual o Mundo é escuro e não tem sentido
Sem o qual a vida é a própria Morte
Sem o qual não há esperança, nem alegria. Amém.

*****
In "A Ordem", n. 87, janeiro de 1938, pp. 47-56.

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