domingo, 31 de dezembro de 2017

O QUE NOS IMPRESSIONA A ALMA

 "Pleni sunt caeli et terra gloria tua! - 'Os céus e a terra estão cheios da tua glória!' Em verdade, para o homem que crê, para o homem que contempla o céu e seus espetáculos, a terra e seus espetáculos com os olhos da fé, nada mais admirável do que esse céu e do que essa terra! Sem dúvida há por toda parte como sombras - às vezes negras e incompreensíveis -, o mal e o erro. Mas o que fundo nos impressiona a alma são as riquezas, a grandeza, a beleza, a glória de Deus.  A majestade e o incomensurável dos corpos celestes e dos espaços interestelares nos mostram, entre vertigens, a imensidade de Deus. As paisagens caprichosas e várias, discretas ou luxuriantes, o sorriso ingênuo e incomparável das crianças, a graça das mulheres, dão-nos um pálido reflexo da beleza de Deus”.
*****
Gladstone CHAVES DE MELO (1917-2001). A Mensagem de São Vicente de Paulo, Revista A Ordem, n. 01-02, Janeiro-Fevereiro de 1950, p. 77.

VOLTA PARA DEUS

Francisco Karam

Eu fui até Vós
Quando ergui os meus olhos.
E todas as cousas desapareceram de redor de mim.

Desapareci eu, em Vós.
Os meus sentidos
Ficaram despregados de mim,
Para Vos sentir.

E em Vós foi que eu senti
E que eu vivi.

Vivi a Vossa Eternidade.
Vivi o êxtase calado de vosso poder.

Divino como Vós, eu me senti senhor,
E grande, e criador,
E terrível.

Momento de todas as horas.
Atravessei as Idades, desde o Princípio.
E fiquei onde estava
Porque não caminhava para o Fim.
Porque não caminhava.
Porque tinha voltado para Vós
E Vós sois a Eternidade.

*****
 Publicado na Revista A Ordem, n. 3-4, 1929, p. 173.


A VIDA FAMILIAR CONHECE DOLOROSAS PROVAÇÕES

“A vida familiar conhece dolorosas provações...
Como hão de os esposos suportar esses sofrimentos se Deus não os sustém derramando-lhes nos corações os bálsamos da vida espiritual? Aqui, ainda, a graça do sacramento será a fonte inesgotável que os secundará na sustentação de seu fardo.
Aliás, as verdadeiras alegrias da vida familiar estão estreitamente unidas ao generoso cumprimento dos deveres a ela impostos.
Eis porque não se pode conceber o amor humano sem que Deus esteja presente para aluminá-lo, guiá-lo e purificá-lo.
A graça é elemento necessário à vocação do casamento”.
*****
Abade Jean VIOLLET. Moral familiar, Rio de Janeiro: Editora Getúlio Costa, p. 12.

sábado, 30 de dezembro de 2017

PÉGUY E JOANA D'ARC

“Péguy, filho de rude empalhadeira de cadeiras, era bem um homem do povo. Provinha dessa raça francesa que ama trabalhar nos trigais, que ama cantar na alegria da vindima e que preza acima de tudo a doçura do espírito, que nenhum grilhão pode acorrentar, porque o espírito sopra onde quer. De um modo igual, Joana d'Arc, que não aprendeu a ler, era visceralmente uma camponesa de França, a moça do povo, que trazia um chapéu e um cajado de pastora, e depois conduziu exércitos e venceu batalhas, desafrontando a honra da pátria. Era, pois, compreensível que Péguy se apaixonasse pela vida e pela obra da virgem guerreira”. 
*****
Melo CANÇADO. Presença de Péguy, Revista Brasileira, n. 18, 1946, p. 15.

O OFÍCIO...

"Dias há em que a gente fica triste com o ofício que tem. Imagino como não deve ser enervante para as cozinheiras, nesses dias, a atmosfera das frituras e a companhia das caçarolas; como não deve ser monótono para o ferreiro o gemido das bigornas; como não deve ser triste, muito triste, o vai-e-vem da agulha na mão picada da velha costureira. Cada ofício é uma prisão. Se a gente tem o espírito largo dos santos a prisão vira clausura de amor e torna-se recanto de paz; mas onde falta a largueza de coração, o ofício é ofício, e a prisão é prisão: as coisas ficam sendo o que são pelo bagaço. E o cárcere do ofício é duro, asfixiante, enervante."
*****
Gustavo CORÇÃO. "Não matar", In. A Ordem, Novembro de 1953.

A MULHER

Tasso da Silveira

Mulher brasileira,
é a ti que eu falo.

A ti que obscuramente realizas
a mulher valorosa
da sabedoria bíblica;
a que é mais preciosa do que as pérolas das extremidades do mundo,
a em quem serenamente confiou
o coração do esposo,
a que recolhe a lã e o linho
e os tece com as suas mãos velozes,
a que se levanta noite ainda
para ordenar o longo trabalho do dia inteiro,
a que provou o azeite
e constatou que ele era bom,
e não deixará extinguir-se pela noite adiante
a chama do seu candeeiro
a que atende o mendigo à porta,
a que se revestiu de força e graça
e riu-se do dia alvorescente,
a que recebeu dos filhos
à hora do despertar
a saudação feliz...

Mulher brasileira: guardarás
ao sopro do vento uivante
esta aureola de sonho e de pureza?

Vejo que não...
Vejo que invade o teu coração desprevenido
um vago fluido de inquietação.
Vejo que já tens ao lábio
o amargor de uma queixa,
vejo que foges
ao teu destino de fecundidade...

Mulher brasileira,
a mais tocada de Deus,
a mais tocada de graça maternal
entre todas as mulheres do mundo:
aprendeste a fazer do amor o gozo efêmero.

Eras como uma terra primitiva
sobre cujo mistério
passou, fecunda, a sombra
do espírito criador,

Passou fecunda, envolta
na pulsação do humano amor.

E no espelho das águas mansas de tua alma
refletiram-se céus distantes e infinitos,
e no húmus do teu corpo
a vida germinou e floresceu.
Eras como uma terra adormecida
que a esse frêmito novo despertou
para a plenitude da alegria
- a alegria de criar...
Mas, depois, esqueceste a transcendência
do teu destino.
E distendeste o corpo fatigado
e olhaste a vida em torno,
e hauriste um sorvo de lascívia,
e achaste
que o teu esforço heroico te roubava
a doçura das horas passageiras.
E, então, tomaste a decisão mortal:
Estancar em teu ser
as nascentes do ser...

Mulher brasileira, com o sacrilégio desse gesto,
profanaste o santuário
dos destinos raciais.

Mulher brasileira, a mais tocada de graça maternal
entre todas as mulheres do mundo
não foi apenas ao transitório sacrifício
das volúpias misérrimas
que fugiste.

Foi às sagradas determinações
da Vida
foi ao sonho
de Deus...

*****
*Parte IV do poema “A exortação”, publicado na Revista A Ordem, n.31, setembro de 1932, pp. 191-192.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA CRISTÃ

"Se a grande cadeia dos modelos intermediários – os santos, os gênios e os heróis – perdeu o poder de atração, nos sobram nas extremidades dessa corrente dois tipos que ainda guardam o valor de exemplo: o Verbo Encarnado e o pai e a mãe de família. No cristianismo e no lar ainda se encontram inalteráveis os exemplos vivos da vida total. Nosso destino está preso à persistência dessa conjugação. Demais, a família cristã é o único lugar da terra onde ainda é possível, se quisermos, manter a elite. Se quisermos! Está tudo aí... Devem pai e mãe se comportar de tal maneira que os filhos possam admirá-los, aprová-los, imitá-los e descobrir neles os modelos de homem e cristão e os exemplos vivos de finalidade natural e sobrenatural; a subordinação dos meios aos fins reduz-se a um jogo quando se encarna lúcida e voluntariamente.
Destarte, pelo contágio do exemplo, hão de nascer elites novas, humildes, sólidas e verazes – no segredo do coração em oração perpétua, no segredo do lar de lume brilhante".
 *****
Marcel de CORTE. L'homme contre lui-même. Éd. de Paris, 2005; pp. 107-137. (Tradução: Editora Permanência)

O MUNDO ESTÁ ATRAVANCADO DE FALSIFICAÇÕES

"Houve uma época na História em que o homem não tinha caminhos cortados, só podendo uma epístola chegar ao seu destino com grandes dificuldades e através de aventuras terríveis. Peregrinos caminhavam meses para buscar junto a um eremita três palavras santas. O próprio Verbo encarnado andou em lombo de burro. Nesse tempo, a superfície da Terra era recalcitrante à palavra; mas uma vez vencida, rasgado o caminho, a rústica dureza se transformava em rústica fidelidade. Os obstáculos, hoje, não estão nos caminhos do chão, mas nos caminhos do espírito. O mundo está atravancado de falsificações".
*****
Gustavo CORÇÃO. Três alqueires e uma vaca, 4. ed., Rio de Janeiro: Agir, 1955, p. 25.

DEPOIS DE MORTO....

“Depois de morto,
primeiro quererei beijar meus pais, meus irmãos, meus
[avós, meus tios, meus primos.
Depois irei abraçar longamente uns amigos –
Vasconcelos, Ovale, Mário...
Gostaria ainda de me avistar com o Santo Francisco de Assis.
Mas quem sou eu? Não mereço.
E então me abismarei na contemplação de Deus e de sua glória.
Esquecido para sempre de todas as delicias, dores, perplexidades
desta outra vida de aquém-túmulo”.
*****
Manuel BANDEIRA. Andorinha, Andorinha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966, p. 320-321.



A INFÂNCIA DE PÉGUY...

“Eu crescia na casa espessa, e era minha avó que cuidava de mim. Que me vestia, me dava de comer, e ralhava quando era preciso. Mamãe não tinha tempo, dia e noite empalhando cadeira... Era vovó que me contava histórias... Eu gostava das histórias encantadas, mas receava um pouco que elas não fossem verdadeiras. Um dia minha avó contou-me a história da sua infância e mocidade, e eu me senti então muito feliz. Pois era uma história longínqua e uma história verdadeira. 
*****
Charles PÉGUY. Excerto publicado na Revista A Ordem, 1955, n. 01.



O HOMEM VIVE EM UM ESTADO DE PERMANENTE INSATISFAÇÃO

"O clima de facilidade e de desfrute em que vivemos, ao multiplicar em todos os planos as necessidades, que aumentam sempre mais rapidamente que as possibilidades de as satisfazer, socavam a base de nossa capacidade de experimentar verdadeiras alegrias e verdadeiros sofrimentos. Para muitos de nossos contemporâneos, não resta mais que a mediocridade de uns pequenos prazeres e de uns pequenos aborrecimentos, avantajando, ademais os segundos aos primeiros com grande diferença, pois o homem, obcecado pela excessiva busca da felicidade, vive em um estado de permanente insatisfação que o faz indiferente ao que possui e avido do que lhe falta. A fome, provocada e mantida artificialmente, se transforma em incurável saciedade. Daí uma frustração em duas fases: “tenho que obter isso custe o que custar”; e depois: “Não era nada de mais; busquemos outra coisa”. Há que se concluir que não se separa impunemente a busca da felicidade do conjunto das atividades, dos deveres e das virtudes, que são a trama de toda existência autentica. Os grandes personagens aos que a humanidade reconhece como seus modelos e guias preocuparam-se, por acaso, alguma vez de sua pequena felicidade individual? Obedeceram à sua vocação sem se esquivar dos riscos nem das desgraças que as acompanha e, às vezes, chegando até o sacrifício de sua vida; e a felicidade, na medida em que é possível neste mundo, lhe foi dada por acréscimo. Pois a vida é indivisível; se em nome do famoso “direito à felicidade” com que nos martelam os ouvidos, se tenta dissolvê-la, se chega ao irrisório resultado de ficar-se só com o liquido".
*****
Gustave THIBON. El equilibrio y la armonía, Belacqva, 2005.


AS MUDANÇAS NÃO PODEM MUDAR O ESSENCIAL...

“Fala-se muito em mudanças, e elas, com efeito, fazem parte do processo histórico, por sinal acelarado como nunca na época que estamos vivendo. Mas as mudanças não podem mudar o essencial, os princípios, as verdades fundamentais, os direitos naturais, a ontologia humana, a natureza que nos foi comunicada no primeiro ato da Criação”.
*****
Nilo PEREIRA (1909-1992). Espírito de Província, Prefácio de Sílvio Rabello, Recife: UFPE, 1970, p. 331.

O JARDIM E A BUROCRACIA

“Concluí que era bom estar um jardim no trajeto da burocracia. Todos os ministérios deviam ser assim, cercados de bosques, para que a alma se orvalhasse antes de chegar ao deserto de papel. Nos próprios corredores das repartições - se me dessem uma pasta por um mês - eu mandaria espalhar avencas e samambaias em vasos rústicos, com cheiro de terra”.
*****
Gustavo CORÇÃO. Lições de Abismo, Rio de Janeiro: Agir, p. 75.

A MÃE DE FAMÍLIA...

“Basta fixarmos os olhos na sociedade, para em breve descobrirmos até que ponto se estende a influência que nela exercem as mães de família. Abalanço-me a dizer que para regenerar a sociedade só duas coisas eram necessárias: bons pastores no meio das paróquias e boas mães no seio das famílias: com estes dois fatores não haveria dificuldades que se não vencessem”.
***** 
P. Manuel MARINHO. Prefácio ao livro “A mãe segundo a vontade de Deus”, do Padre J. BERTHIER, M.S., Porto: Tipografia Fonseca, 1927, p. 12.

sábado, 23 de dezembro de 2017

NATAL

Tasso da Silveira

Roto e descalço, vai o pobrezinho,
de olhar faminto, pela longa rua...
Nos farrapos da blusa, as mãos fanadas esconde,
as mãos que a sombra de um carinho nunca aflorou... 
E vai devagarinho.
E as pessoas que passam apressadas
interrogam com o olhar, em que flutua
um desejo, uma dor, uma agonia...
... e ninguém, oh! Ninguém que lhe sorria
(tão só no mundo!) – pela longa rua...
Oh! Que risadas claras de crianças
Nos salões de ouro! – (Nos salões, que linda festa não vai...)
– Se ele pudesse Vê-las...
Mendigozinho... Em vão o corpo avanças...
É tão alta a janela! Não a alcanças...
E vem a noite... Acendem-se as estrelas...
E o coitadinho, na tristeza infinda
Daquela atroz, imensa, aguda mágoa,
Fica-se a olhar – olhos boiando em água –
A árvore de natal do céu... Tão linda.
*****
Tasso da Silveira. In “A União”, n. 65, 1926, p. 7.

CANTO DO MISTÉRIO DO NATAL

Augusto Frederico Schmidt

Uma voz se levanta de repente,
Voz misteriosa e criadora,
Forma do próprio Espírito infinito
E ante essa voz, que vem do Tempo Eterno
Um mundo já perdido, na distância
Se liberta de súbito, e aparece
Próximo ao nosso olhar.
Próximo e esplendido
Na sua luminosa suavidade
 ***
E a voz é o próprio pensamento
Tocado pela graça
E a voz é a revelação
Do mundo redimido da miséria.
Do mundo onde não vinga a lei do Tempo.
Mundo em que as flores são eternas
Eternos os seus frutos
E as águas suas sempre vivas.
Mundo virginal, fecundo e inalterável.
***
No princípio era a Voz que nascia
E com a voz o Puro Pensamento,
E os clarões em que a Suprema Inteligência
Configurava o Destino insoldável dos seres.
No princípio era a Voz
Do abismo originária
E eco de uma outra voz – Filha do Verbo
Ordenador dos ritmos eternos
Fonte da Vida, fonte da Consciência
Fonte da Salvação e Eternidade.
***
No princípio era a Voz
E a voz surgindo, procurou a Vida
E a vida estava nas Estrelas do Céu
E na Estrela que anunciou aos tímidos pastores
O Incrível Acontecimento.
E a Voz se aproximou das simples coisas
Até onde se estendia a Graça eterna.
E a voz – recebeu os sons e os ruídos
Do Mundo,
Os risos das raparigas nos folguedos
O balir das ovelhas,
O mugido dos bois pacíficos e ungidos pela bondade rudimentar.
E a voz se uniu e recebeu o canto da pequena cidade
Como o mar recebe no seu seio fundo
As águas confusas e transidas do mundo.
***
E a Voz era o anúncio da vinda
Do que era o Equilíbrio e a Salvação
Entre as leis da Morte e do Desespero.
E a Voz era o sinal de que o Filho do Homem
Estendera para o futuro do mundo
As mãos e os pés para o castigo infamante.
E a voz, que era a Própria Vida, se transformou em música!
***
E vem do fundo misterioso da Noite de Natal,
Do fundo da longa noite lúcida e estranha de Natal
A grande música.
***
São sinos que tocam nas brumas invisíveis
São harpas que as asas dos Anjos fazem tremer
São soluções de crianças
São dores gloriosas
São bênçãos paternas cheias de frutos.
***
E vem do fundo sem termo da Noite de Natal
A música da transfiguração
E a música realiza o mistério
O mistério da Contemplação.
***
A hora é noturna.
O crepúsculo á fugiu há muito com as suas longas asas
E os braços da noite desceram silenciosamente sobre a terra.
****
Há uma candeia que o vento ao longe balança.
Há uma luz que tremula indecisa nos limites das trevas.
Há uma luz que resiste aos ventos e que resiste às chuvas.
***
A noite é cheia de Graça!
A noite é cheia de Harmonia!
****
Ó! Música do Céu e da terra dai-nos de novo, um instante ainda a contemplação do Acontecimento!
Dai-nos de novo, não emoção do Milagre
Não a poesia distante do símbolo
Não a pálida flor da nossa imaginação maravilhada.
Ó! Música nascida do Natal,
Dai-nos a Face, a nua e simples Face do Acontecimento.
Queremos ver tudo como tudo se realizou
Queremos ver de novo as pobres mãos de Maria
As pobres mãos brancas e castigadas das lides domésticas
Mãos maternas e pobres escurecidas pelo frio e o desconforto.
Queremos o olhar indizível do Lírio que o Eterno fecundou e fez frutificar.
***
Ó! Música, condutora da mão que escreve estas humílimas palavras.
Dai-nos a realidade incomparável
Dai-nos o choro inocente do Menino
Dai-nos as desconhecidas fisionomias dos Magos,
Dai-nos a visão maravilhosa da Estrela indicadora
Com a sua cauda e o seu brilho.
Dai-nos de novo, ó!  Música, a atmosfera que envolveu os personagens do Acontecimento.
***
Queremos as pobres e improvisadas cobertas
Os abrigos humildes que defenderam do inverno
O corpo intocado da Esposa do Eterno.
Queremos os objetos, as coisas mais pobres
A bilha de água das viagens ásperas,
As alpercatas de José, grande e doce José,
Tão natural e tão heroico na sua confiança e na sua pureza.
Queremos o bafo generoso dos bois que participaram da Hora Divina
Queremos o que se realizou, nos seus mais ínfimos detalhes.
Queremos a própria identidade de um viajante noturno
Que atravessou ingenuamente Belém adormecida
Que passou arrastando o bordão nas estradas
Em frente aos portais do estábulo
Na ora em que se encarnava o Unigênito
O Filho do Deus dos Desertos; do Deus Ordenador do Caos e iluminador dos Espaços.
***
A realidade do Natal, nós te pedimos ó! Música do Cristo Menino
A realidade nua, nós te pedimos para iluminar este mundo escuro
Ó! Momento do Milagre de Amor e do Sacrifício de Deus!
A realidade do instante em que o Acontecimento se verificou, nós te pedimos
Para que a Alegria e a Esperança de novo
Renovam o ar irrespirável que as nossas gerações hoje recebem
As nossas gerações distanciadas do Natal, como se tivessem chegado
Nas horas confusas do Velho Mundo, do Mundo sem redenção ainda preso ao pecado original como a terra às leis do Sol.
***
Natal! Natal!
Do fundo da Noite Primeira do Cristo – chega a Poesia redentora.
E do fundo do Tempo, que a estranha Presença libertou da Morte
Nos vem, ampla e profunda, a música perturbadora.
E com a música a cena – distante e intata.
***
Vamos ouvir e vamos olhar o povo de Israel, um instante
O inquieto e ansioso povo Escolhido, escolhido para o Sofrimento e para a Gloria.
Vamos ouvir e vamos olhar o povo incomparável
De onde nasceu a Negação e a Blasfêmia.
Vamos ouvir e vamos olhar o Povo Escolhido
O povo que não quis o Deus que os outros povos reconheceram e adoraram.
Vamos contemplar a imensa e triste arvore de David
Cheia de frutos estranhos, mas curvada para a morte.
A árvore enorme, mas habitada pelas desgraças.
Com as suas longas raízes bebendo os venenos ignorados de um rio subterrâneo e sem nome.
Vamos contemplar, a Face do Povo Judeu
E as fisionomias morenas e trágicas dos seus filhos
Vamos verificar a miséria da raça perseguida
Na hora em que Deus a visitou na Pessoa do seu Filho,
Do Cristo, concebido sem pecado de Maria.
Vamos olhar e vamos sentir a desgraça de Israel
Na hora última, no instante da escravidão
Quando o jugo estrangeiro já não provocava mais revoltas.
E o Messias era uma esperança inútil e sem desejo.
Vamos olhar os Filhos da Raça Eleita
Últimas espigas, espigas abandonadas que Ruth não recolheria da seara de Booz
Sinais apenas do grande trigal humano,
Da Raça que sofreu o Amor de Deus em toda a sua violência.
E que Deus premiou fazendo-se dessa mesma Raça!
Dessa Raça triste e que habita no erro ainda hoje
E até o momento, em que a Misericórdia imperativa o consentir.
***
Natal! Os sinos romanos, somente muito depois traduziriam.
A tua incrível poesia para o nosso entendimento!
Natal! Ó! Sinos do futuro, tão silenciosos ainda!
Eu vos ouço vibrar, sobre a pobreza do Presépio.
Ó! Sinos da Roma Vencida sinos ainda invisíveis.
Sinos em torres de Igrejas não construídas
Eu vos ouço, sonoros, cantando e abençoando
A pobre noite de Belém
A humilde noite de Belém.
A nua e tocante cena do nascimento do Filho dos viajantes sem pouso.
Sinos de ouro, sinos de bronze, velhos sinos
Sinos que iluminais as noites dos séculos
Sinos que desceis límpidos aos corações poluídos e sombrios.
Sinos da Igreja invencível
Eu vos estou ouvindo, vibrantes dentro da noite gloriosa
Em que as formas humanas, as pobres formas humanas,
As pobres formas de um menino frágil contiveram o próprio
Verbo que era levado sobre as águas nos dias primeiros.
***
Não direi, não conseguirei jamais dizer, com as minhas palavras
Como desejaria ardentemente, o Acontecimento do Natal.
Para falar dele, somente as simples expressões
As simples expressões de Marcos, de Mateus e de Lucas, são próprias
E nem João, porque, o próprio João era o Fogo, e o Espírito Puro.
E os outros, apenas, narradores da verdade, naturais e diretos 
Assim, não conseguirei amais falar do lar improvisado de José.
E da sua pobreza completa.
Porque o Milagre, a consciência e o conhecimento do Milagre
Alvoroçam a minha imaginação e a conduzem para o delírio.
Ao desejo de evocar o Natal no seu quadro doméstico
Sinto o tumulto, a grandiosidade, a sonoridade e o clarão do Mistério magnifico.
E os olhos cheios de susto
Vem os pastores acordados pelos Anjos
E vem Herodes pedindo aos Magos a confirmação e o sinal do Messias.
E vêm nos céus da humílima Belém,
O Espírito Santo.
***
Cristo nasceu! Nasceu o Messias, o Esperado e o Prometido
Na hora da perseguição, na hora da humilhação da Raça.
Na hora da hipocrisia, na hora de Pilatos, na hora da estupidez e da covardia, quando o Reino de Israel era uma sombra distante e impossível.
Na hora vil, entre todas as horas do povo judeu.
Na hora da adulação ao terrível Senhor do Império.
Na hora da frouxidão e da sombra.
Na hora da última queda, da descida ao chão de um povo que foi o escolhido; de um povo que teve um dia Moisés como condutor.
De um povo que teve Salomão e David.
De um povo que inspirou a poesia oleosa e trigueira do Cântico dos Cânticos
Com a sua Rosa Vermelha, e os seus ciprestes balançados pelos ventos
Foi, pois, na hora em que Judá se prostrava diante dos pés do César
Na hora em que a poeira descera sobre a antiga nobreza.
Sobre a raça altiva e dilacerada.
Foi na hora da Morte
Que o Menino chorou pela primeira vez com o seu pequeno corpo castigado pelo frio deste mundo
E então, Roma foi vencida
E o sinal da Cruz surgiu diante das tropas guerreiras
E Roma, plácida e sólida como um pomar na primavera,
E Roma madura no seu espírito
E harmoniosa nas suas formas, e a grande Roma que deu em Virgílio a medida, da sua harmonia e da sua clara maturidade.
E Roma, a Fecunda, campo de trigo sob os azuis céus abertos,
E Roma, a solida, somente se prolongou na eternidade com a sua influência decisiva e renovadora
E adquiriu as substancias indispensáveis à vida, no mundo que ia nascer e que é o nosso mundo
Isto só porque recebeu e guardou as palavras, a máscara piedosa e magnifica e o sangue
Do Menino, que nasceu em Belém!
***
Natal! Natal! Natal!...
Cantai Anjos a Glória do Natal
Cantai vozes em coro o Menino transido
Cantai estrelas nos céus noturnos
Cantai corações, em que a esperança revive e sempre se renova.
Cantai, ó! Alma ainda intocadas
Cantai, vozes maternas, vozes fecundas e enternecidas das criaturas que transmitiram a Criação.
E repetiram o sacrifício de Maria.
Cantai, santos e pobres,
Cantai, para acordar o mundo
Cantai para lembrar ao mundo o Acontecimento
Cantai, dentro da funda Noite, para defender a inocência
Cantai sobre os campos de batalha,
Sobre os ódios e as divisões destes tempos
Cantai para que se avivem e inquietem as memórias.
Cantai em defesa das crianças que estão nascendo nesta hora
Em todas as partes do mundo.
***
Que a Mensagem de Natal seja, nesta hora amarga,
Que a poesia de Natal seja neste instante de agonia e de tristeza
Transmitida com um heroísmo até aqui não conhecido.
Que a Mensagem de Natal, que a música do Nascimento redentor chegue até onde domina o silencio áspero dos Estados dos novos Césares
Que a Mensagem do Natal chegue até onde o Cristo é negado à infância.
Até onde a Face do Cristo é escondida às crianças,
Às crianças que O procuram, no entanto, sem saber sequer que O procuram
E que reconheceriam facilmente se O encontrassem,
Porque se sentiriam compreendidas e amparadas
Com a simples ação da sua presença incomparável.
***
Natal! Natal!
Passos perdidos na neve
Passos nas matas, nas cidades, nos campos em flor,
Sinos cantando o Natal
O Natal dos deserdados
O Natal dos solitários
O Natal dos que estão lutando nas trincheiras
O Natal dos que não aprenderam o nome do Cristo
O Natal dos que não têm esperanças
O Natal de todos os filhos destes tempos inquietos
O Natal sem bênçãos e o Natal sem alegrias
O Natal humílimo, e, o Natal da Hora da Agonia.
***
Descei – ó! Poesia impossível e intraduzível do Natal
Sobre a avidez e a insensibilidade desta hora incerta
Descei, ó! Imagem nua do Cristo recém-vindo do ventre imaculado.
Descei, ó! Espírito puríssimo do Natal.
Descei, sobre os nossos corações e sobre as nossas tristes cabeças
Descei como o sol quando desce sobre a terra
Descei para dar-nos o Coração do Cristo, o Coração acolhedor e Insubstituível do Cristo,
Sem o qual o Mundo é escuro e não tem sentido
Sem o qual a vida é a própria Morte
Sem o qual não há esperança, nem alegria. Amém.

*****
In "A Ordem", n. 87, janeiro de 1938, pp. 47-56.