segunda-feira, 30 de abril de 2018

SOLIDÃO DO HOMEM SEM CRISTO

Murilo Mendes (1901-1975)*

Já temos atrás de nós uma soma enorme de humanidade.
Quanta força perdida! Quantos gestos inúteis! Não podemos acrescentar ou diminuir um centímetro ao nosso corpo. Quase não podemos caminhar nas almas. Diante de nós se estende a amplidão do deserto.
Deus! Deus! O nosso Deus é um Deus escondido. Somente o Crucificado consegue de repente nos fazer crer na existência. Fora do Crucificado só há fantasmas.
*****
*Publicado na revista "Vida", n. 24, 1936, p. 5.



terça-feira, 17 de abril de 2018

JORGE DE LIMA


No crepúsculo indeciso da tarde que morre ouvimos das “Ondas Sonoras” de uma irradiação uma voz que prenunciava: o poeta está morrendo... rezando...
Nesse instante senti, e percebi ser a alma de meu caro professor Jorge de Lima que se aproximava da eternidade. Ele que cantou em versos magistrais o tempo e a eternidade deixava o tempo, a atualidade com todas as suas ilusões e se revestia das galas da oração para a entrada triunfal da eternidade.
Em seus poemas cantava a despedida da poesia:

“Senhor Jesus,
Onde é que vou buscar poesia?
Devo despir-me de todos os mantos,
os belos mantos que o mundo me deu.
Devo despir o manto da poesia.
Devo despir o manto mais puro.
devo despir-me do que é belo,
devo despir-me da poesia,
devo despir-me do manto mais puro
que o tempo me deu, que a vida me dá”.

Realmente ele trocou a túnica inconsútil da poesia pela imortalidade da alma na essência esplendorosa do amor infinito.

Para o azul silencioso
a alma de Jorge de Lima
sobe...
Ele buscou conforto à sua dor
no coração de Deus
que transcende amor...
eterna vida!
Não quis fonte humana...
esperou...
Amou e confiou
na sublime promessa do Nazereno!

E o poeta abraçado ao crucifixo,
unido ao seu Jesus morreu
Rezando...
*****
Leonila Linhares Beuttenmüller. In A Cruz,  Ano XXXVI, n° 1.920,Rio de Janeiro, 27 de Dezembro de 1953, p. 5.
(Jorge de Lima - 1893-1953)

quarta-feira, 11 de abril de 2018

A ESCOLA


Mons. Pedro Anísio.

“(...) a escola tem por principal escopo, não comunicar apenas aos meninos uma determinada soma de conhecimento, tanto de aritmética, tanto de geografia, tanto de história, etc., mas formar o espírito, desenvolver a personalidade, abrir na alma firmes e amplos fundamentos que possam sustentar o caráter e a vida moral do educando. 
A escola, para ser escola, para corresponder à sua finalidade, deve ter valor educativo, deve servir-se do ensino das diferentes disciplinas, dos objetos e circunstâncias que se oferecem ao mestre em suas relações com os alunos para os conduzir à prática do bem, ao cumprimento do dever, de sorte que, no dia de amanhã, possam, com ânimo forte e varonil, fazer face às emergências da vida.
O grande dever do homem é servir a Deus, na vocação própria que a Divina Providência lhe destinou para, assim, alcançar a sua felicidade eterna.
(...) Sob o pretexto especioso de vencer o analfabetismo, multiplicam-se indefinidamente as noções acessórias, deixando-se de lado a educação moral. Nas aulas do Estado ateu não se fala de Deus e da Providência, despreza-se o seu nome, e tem-se como sobrecarga o ensino da religião.
Em lugar de cultivar nos jovens os sentimentos de virtude, de amor de Deus, de piedade filial, de amor da Pátria, de abnegação e sacrifício, a escola neutra transforma-se em seminário de descrença e de dissolução moral.”.
*****
*A quem pertence a Educação, Revista A Ordem (Nov-Dez), 1933, p. 812-813.




terça-feira, 10 de abril de 2018

PROCISSÃO




PROCISSÃO
Letra: António Lopes Ribeiro
Intérprete: João Villaret


Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.
Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!
Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!
Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

O TESOURO DA LITURGIA TRADICIONAL

Marie Noël (1883-1967)


Certos clérigos inovadores tendem cada vez mais a se desviar da liturgia tradicional para abrir o futuro, cada vez mais, a uma religião loquaz, que pensam falar melhor, com mais resultado, à alma do povo.

Abandonam voluntariamente a prática dominical — vésperas, completas — para multiplicar, fora da Igreja, reuniões à base de conversas, sessões de pequeno parlamento piedoso e substituem, nos próprios ofícios, os misteriosos hinos sagrados, julgados ininteligíveis, pelo cântico em língua vulgar, cujo nome diz tudo o que significa: pouca coisa ou nada.

Nessa determinação de vulgarizar — e quanto! — o culto divino, desnudando-o de sua secular beleza santificante, como um Presente que é preciso enfim exterminar, um Passado que já é hora de empobrecer para colocar no baixo nível do maior número, esquecem-se de que a virtude mística, ao contrário, consiste em elevar o maior número ao nível supra cotidiano dos eleitos na eternidade.

Teria o fiel necessidade de compreender tudo?

Há várias palavras no verbo de Deus. Deus não fala ao homem somente por discursos que lhe sejam mais ou menos convincentes, mas também quando o homem se cala, por um atingimento interior que a palavra não conhece.

Para essa aproximação divina, a liturgia constitui uma via superior e quase sacramental, o coro secular da Comunhão dos Santos que une através dos tempos, pelas mesmas palavras carregadas da alma da mesma oração, o “Miserere” e o “Magnificat” de uma anciã iletrada, ao “Miserere” e ao “Magnificat” de Tomás de Aquino, o doutor, o de Joana de Lorena, que não sabia ler.

Esses reformadores — tanto quanto Calvino antigamente — jamais perceberam que é uma Dádiva feita às multidões a Liturgia Católica, pela qual a Igreja militante, no seu caminho de miséria na terra, ascende algumas vezes aos primeiros degraus iluminados da Igreja triunfante e por um instante experimenta o Céu?

* * *

Quem mede a Dádiva da Igreja ao povo?

A múltipla riqueza litúrgica, o chamado entre terra e céus do “Rorate” do Advento, sua sublime aspiração desolada e consolada; o “Glória laus” da festa de Ramos, caminhante e verdejante; o “Exsultet” da noite Pascal; os grandes Aleluias da Páscoa, sob os sinos a toda força; a lamentação extraterrena do ofício dos Mortos, seu formidável e suplicante “Dies iræ”; o “Parce Domine” implorando contra as calamidades públicas; o “Te Deum” fulgurante, sobre-humano das ações de graças com seu caráter épico, toda essa magnificência cantada, a Igreja Católica dá ao povo na magnificência monumental das catedrais, sob a magnificência radiosa dos vitrais.

Jamais rei algum, na sua glória, ofereceu a si mesmo tamanho tesouro; nunca os chefes de repúblicas se reunirão de tal modo para o Fausto destinado a seus convidados de honra.

Mas a Igreja Católica, na inigualável igualdade de sua caridade universal, abriu e abrirá esse tesouro, de século em século, ao menor de seus pequenos, ao primeiro morto que entrar, ao primeiro mendigo que passar.

E se por infelicidade, um dia, não pudesse ela mais proporcionar essa magnificência ao homem, que restaria ao homem que padece sob o jugo do trabalho para alegrar seu dia de festa? Barulho de alto falantes, discursos de ministros... E os cavalos de parque de diversões.

* * *

Perguntaram-me, recentemente, através de qual ordem religiosa teria eu bebido tão profundamente das fontes litúrgicas.

Até poucos anos, jamais havia falado nem a monge, nem a freira, jamais havia posto os pés num parlatório de convento.

Mas minha avó era uma dessas senhoras francesas, que cantavam Vésperas todos os domingos, Completas nos dias de festa e que seguiam minuciosamente, nos seus grossos livros de folhas amareladas, as Trevas da Semana Santa e as Grandes Matinas de Natal e do Dia dos Mortos.

Mal tinha eu nove anos, mas ela me fazia acompanha-la. Para mim, era como entrar num mundo sublime, fora do outro, onde Deus e o homem trocavam palavras estranhas que não tinham sentido nos outros países.

Na noite de Todos os Santos, às 6 horas, penetrávamos as duas na grande Noite da Catedral, que não tinha àquela hora, sob as abóbadas prodigiosas, nem começo nem fim.

Poucos fiéis pelas cadeiras. Da entrada até o altar, a Igreja estava revestida do negro dos grandes funerais que, do coro, algumas velas assustadas, tremeluzindo na penumbra, mal iluminavam.

Na torre, dobrava o carrilhão, esse admirável carrilhão da Catedral de Auxerre, grupo trágico de sinos profundos que soavam bruscamente, em soluços, cinco ou seis notas dilacerantes e recaiam no silêncio de onde, novamente, tornavam a sair após alguns minutos de angústia, com lágrimas tenebrosas que haviam recolhido em não se sabe que poços de dor e medo.

Eu esperava, arrepiada, cada volta desses hinos pungentes... Enquanto isso, cantávamos com os padres, os salmos de David, as lamentações de Jó. Lá ouvi — com nove anos — o inconsolável grito do homem, grito que entrou em mim, e não saiu mais.

Creio que esse Jó, esse David, foram meus verdadeiros, meus primeiros Pais entre todos aqueles que são para nós os Poetas, os Profetas e os Gênios.

Mesmo sendo ignorante (não sei mais latim do que minha mãe, minha avó e suas criadas), sou, de igual modo, tão apegada ao latim de nossos ofícios que sofro grande ausência quando a versão francesa — secularizada — dele nos priva.

Como saber o porquê dessa nostalgia espiritual? Talvez exista no nosso canto litúrgico que do fundo dos séculos tantas bocas bem-aventuradas nos transmitiram, um Dom quase sacramental do Espírito de Pentecostes, que falava misteriosamente às almas simples pelos vocábulos sagrados, os quais querem agora nos tirar porque, sendo nós insuficientemente instruídos, não saberíamos escuta-los bem.

Oh! claro, que não os entendíamos todos, apesar dos nossos livros de Missa, mas deixávamos que essas palavras passassem sobre nós como uma corrente de graça. As palavras muitas vezes repetidas, do “Veni Creator”, “Miserere”, “De Profundis”, “Magnificat”, “Te Deum” e de todos os outros cantos tinham se tornado em nós nossa riqueza familiar, pela grande magnificência aberta da Igreja Católica, cuja oração secular eleva os humildes sem que eles o saibam e os valoriza, melhor que lições e discursos de todos os tempos em todos os lugares do mundo.

***** 
*(Publicado na Revista Permanência, Maio-Junho de 1982. Traduzido por Afonso dos Santos de “Itineraires” n° 257).


A UTOPIA


Gustave Thibon

"Todo o bem real projeta algum mal: só um bem imaginário não projeta mal". Este pensamento de Simone Weil exprime uma verdade profunda. A linguagem corrente traduz a mesma ideia dizendo que "não há luz sem sombra".
Podemos sonhar e esperar uma felicidade absoluta ou uma perfeição sem mistura de imperfeições, mas não podemos alcançá-las. A vida real é sempre uma mistura de bens e de males e a melhor coisa tem sempre o seu lado negativo.
Quem parte de férias para um pais meridional sonha com um céu sempre sem nuvens, com um mar tranquilo onde os banhos são uma delícia, com alimentos novos e saborosos, etc... Sem dúvida, encontrará tudo isso, mas experimentará também (e estas coisas não estavam previstas no seu programa de férias) os engarrafamentos de trânsito, dias de mau tempo e talvez mesmo algumas indigestões, devidas à cozinha exótica...
Os namorados pensam no casamento como numa lua-de-mel permanente e sem fim e pensam nos futuros filhos como numa alegre ninhada de pequenos seres encantadores e afectuosos. Na realidade, algumas cores escuras virão misturar-se a estas visões cor-de-rosa. Nem todos os casamentos são felizes e, mesmo nos melhores, há sempre uma parte de decepção e de provações. E quanto aos filhos trarão aos pais, juntamente com alegrias, um cortejo de preocupações e de dificuldades...
O mesmo acontece com todas as outras circunstâncias da vida.
Por que razão há esta distância entre o que se deseja e o que se consegue na realidade? Muito simplesmente, porque os nossos desejos são indefinidos e as nossas capacidades de realização são muito limitadas.
Qualquer que seja a orientação que dermos à nossa vida, ela comportará sempre uma mistura de bem e de mal.
Por isso, a sabedoria consiste em escolher não só o maior bem, mas também o menor mal. E acontece, não raro, que a solução menos má ainda é a melhor. Schopenhauer dizia que os reis que começavam as suas proclamações por estas palavras: "Nós pela graça de Deus", estariam mais próximos da verdade, se escrevessem: "Nós, de dois males o menor". Com efeito, toda a autoridade comporta abusos e injustiças, mas o governo mais imperfeito ainda é preferível à anarquia.
A vida terrena é um caminho imperfeito para a perfeição que nos espera na eternidade. Este caminho torna-se rapidamente impraticável, se exigirmos dele a perfeição, que só será alcançada no termo. É neste sentido que lorde Acton dizia que "a sociedade se torna um inferno, na medida em que se quer fazer dela um paraíso". Se, ao pensar em casar, um homem sonha com uma esposa ideal e com filhos absolutamente sem defeitos, mais lhe vale ficar solteiro, para não ser um mau marido e um mau pai. E se, na vida profissional, uma pessoa não tolera nenhum fracasso nas suas empresas nem nenhum defeito nos seus colaboradores, todos os seus esforços ficarão estéreis. A experiência prova que não há homem mais insuportável que aquele que não sabe suportar nada.
São Tomás Moro descreveu numa obra célebre um Estado onde reinaria a justiça ideal e a felicidade absoluta. Mas situou esse Estado na ilha da Utopia, o que em grego significa o pais que não existe em parte nenhuma. Enquanto a nossa viagem terrena não chegar ao fim, devemos, portanto, tender para a perfeição, mas nunca pretender consegui-la.

Gustave Thibon (1903-2001)


domingo, 1 de abril de 2018

RESSUSCITOU!


Gustavo Corção*

Não há em todo o ano litúrgico, que é o vôo circular em que a Igreja contempla amorosamente os mistérios de Cristo, momento mais jubiloso e mais belo em que, antes de acender o Círio Pascal, o Diácono canta o “Exultet Jam Angélica Turba Caelorum...” que é, sem dúvida alguma, o maior primor que os homens, com inspiração divina e engenho próprio jamais lograram compor em toda a história do cristianismo e do mundo. Quem já adulto, e já doloridamente vivido, teve a felicidade de ouvi-lo pela primeira vez no esplendor do Movimento Litúrgico, pôde apreciar, nessa adamantina condensação, todo o apuro, todo o requinte de infinito bom-gosto que a Igreja, ex abundantia operis, trouxe à civilização, e até hoje guarda a lembrança do estremecimento da alegria que nessa noite sentiu como antecipação de todas as promessas de Deus:

O vere beata nox, quae sola meruit scire tempus et horam in qua Christus ab inferis ressurrexit! – Ó bem-aventurada noite, única que mereceu conhecer o dia e a hora em que Cristo ressuscitou dos mortos.

Inebriada de alegria a Igreja delira, e chega à amorosa inconveniência, à desmedida loucura de cantar:

O certe necessarium Adae peccatum... O felix culpa... – Ó necessário pecado de Adão...Ó culpa feliz.

E depois, agora mais senhora de si, gravemente repete a grande história do Verbo de Deus desde a madrugada da Criação, desde a promessa feita a Abraão, e através das palavras dos profetas até aquela outra madrugada do primeiro dia da semana em que Maria Madalena e a outra Maria vieram visitar o sepulcro.
Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e Salomé, haviam comprado aromas para embalsamá-Lo, e pelo caminho diziam: “Quem nos levantará a pedra do sepulcro?”
Chegadas, viram a pedra rolada, e então as duas mulheres voltaram correndo para anunciar aos apóstolos o que viram e ouviram do anjo que estava ao lado do sepulcro: Ele ressuscitou!
E daí em diante começaram as páginas mais transluminosas, e mais banhadas de alegria das Sagradas Escrituras. Cada quadro tem uma luz suave e mais penetrante do que todo o alvorecer da Criação.
Agora num relâmpago, vemos Maria Madalena voltar-se para o vulto que julgava ser o do jardineiro, e com ela ouvimos:
- Maria! E logo a resposta de adoração: - Raboni!
Mais adiante é no Cenáculo, onde estavam fechados e tristes os apóstolos, que Jesus ressuscitado aparece e lhes diz: “A paz seja convosco.” E agora é na estrada de Emaús que dois discípulos caminham conversando a respeito de tudo o que havia acontecido, e à certa altura percebem que alguém caminha com eles, e lhes pergunta: “De que falais enquanto caminhais?” Os viandantes ficaram tristes, e o que se chamava Cleofas respondeu ao desconhecido: “Serás tu, forasteiro em Jerusalém, o único a ignorar o que se passou nestes dias?” “O que aconteceu?”, perguntou o desconhecido. E os peregrinos contaram a história de Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus, que os príncipes dos sacerdotes e magistrados entregaram para ser condenado à morte, e morte de cruz; e disseram que estavam tristes porque esperavam que ele libertasse Israel, e agora já três dias passaram... É verdade que algumas mulheres, que se achavam conosco, dizem que seu corpo desapareceu do sepulcro e que um anjo anunciou que Ele estava vivo! Mas eles ainda duvidavam...
Disse-lhes então o desconhecido: “Ó homens sem inteligência, como tarda vosso coração em crer o que os Profetas anunciaram!” E começando por Moisés, percorrendo todos os Profetas, o desconhecido ia explicando as palavras de Deus à medida que se aproximava de Emaús. O desconhecido deu a entender que tomava outro caminho, mas a pedido dos peregrinos entrou com eles num albergue. “Fica conosco!” pediam os peregrinos, e Jesus, com eles à mesa, tomou o pão, benzeu-o, partiu-o, e deu-lhes, e então seus olhos se abriram, mas Jesus desaparecera.
Esta pequena história que resiste a todos os maltratos da humana grosseria, tem inspirado e animado o engenho de todas as artes humanas, e poderá ainda, até o fim do mundo, ser cantada, contada, pintada e lavrada sem que a infinita profundidade de sua beleza venha a se exaurir. Por mim, neste momento, sinto com especial comoção a beleza da ação de graças dos dois peregrinos quando retomam a caminhar: — “Lembras-te como nosso coração se abrasava quando Ele, no caminho, nos explicava as Escrituras?”.
Peçamos nós a esses santos peregrinos que nos obtenham de Deus a mesma graça de sentir arder o coração quando ouvirmos a voz de Cristo na voz da Igreja a nos explicar os formidáveis mistérios da Pátria.
Diz-nos São Paulo na Vigília Pascal: “Se morrermos com Cristo, com Ele ressuscitaremos e viveremos". Mas nosso tardo coração sente-se amedrontado diante de tão excessiva promessa de Deus.
Na verdade, na verdade, todos os dons de Deus e todas as suas promessas são excessivas, e tamanho clarão de mistério às vezes mais nos ofusca e nos cega do que nos ilumina. “Creio... na ressurreição da carne...” balbucio eu envolvendo este artigo no mesmo global ato de fé que tem sua razão de ser na Palavra de Deus. Balbucio e tremo quando considero esta pobre carne já tão desgastada, “comme um vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin” – como um velho carneiro que perdeu sua lã nos espinhos do caminho. Como poderá resplender e reflorescer este pobre corpo já tão próximo do desmoronamento total?
Afina teu ouvido, ó tardo coração, e pondera que nesta Vigília Pascal, por sua Igreja, Cristo nos rememora todas as grandezas de Deus desde a criação até esse momento único em que a chama do Círio representa a grande transição, a maravilhosa travessia, a Páscoa que nos transporta de um desastrado mundo para o mundo dos ressuscitados. E pondera bem, alma de minh’alma, que um só ato vivificado pela graça de Cristo é maior do que todas as galáxias; e que as vezes que do pecado saíste por um ato de contrição e pelo perdão sacramental somam maior total de maravilhas do que todo o Universo criado. Na verdade, na verdade tu te deténs demais na excessiva promessa anunciada pelo Exultet porque ainda te agarras demais à idéia de que teu corpo com sua variedade de órgãos e funções, é a maior maravilha de teu ser. No que te enganas demais, alma de minha alma, porque a maior maravilha de meu ser é a graça da adoção, é o favor sobrenatural que Deus nos concede: o de podermos chamá-lo de Pai Nosso...
E nessa ordem de coisas, que importa infinitamente mais do que todas as estrelas do céu, todas as flores da terra e todos os peixes do mar, nessa ordem nova ou nessa nova criação – tudo é graça.
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                                                                               *O GLOBO 29/3/75