Marie Noël (1883-1967)
Certos clérigos
inovadores tendem cada vez mais a se desviar da liturgia tradicional para abrir
o futuro, cada vez mais, a uma religião loquaz, que pensam falar melhor, com
mais resultado, à alma do povo.
Abandonam
voluntariamente a prática dominical — vésperas, completas — para multiplicar,
fora da Igreja, reuniões à base de conversas, sessões de pequeno parlamento
piedoso e substituem, nos próprios ofícios, os misteriosos hinos sagrados,
julgados ininteligíveis, pelo cântico em língua vulgar, cujo nome diz tudo o
que significa: pouca coisa ou nada.
Nessa determinação de
vulgarizar — e quanto! — o culto divino, desnudando-o de sua secular beleza
santificante, como um Presente que é preciso enfim exterminar, um Passado que
já é hora de empobrecer para colocar no baixo nível do maior número,
esquecem-se de que a virtude mística, ao contrário, consiste em elevar o maior
número ao nível supra cotidiano dos eleitos na eternidade.
Teria o fiel
necessidade de compreender tudo?
Há várias palavras no
verbo de Deus. Deus não fala ao homem somente por discursos que lhe sejam mais
ou menos convincentes, mas também quando o homem se cala, por um atingimento
interior que a palavra não conhece.
Para essa aproximação
divina, a liturgia constitui uma via superior e quase sacramental, o coro
secular da Comunhão dos Santos que une através dos tempos, pelas mesmas
palavras carregadas da alma da mesma oração, o “Miserere” e o “Magnificat” de
uma anciã iletrada, ao “Miserere” e ao “Magnificat” de Tomás de Aquino, o doutor,
o de Joana de Lorena, que não sabia ler.
Esses reformadores —
tanto quanto Calvino antigamente — jamais perceberam que é uma Dádiva feita às
multidões a Liturgia Católica, pela qual a Igreja militante, no seu caminho de
miséria na terra, ascende algumas vezes aos primeiros degraus iluminados da
Igreja triunfante e por um instante experimenta o Céu?
* * *
Quem mede a Dádiva da
Igreja ao povo?
A múltipla riqueza
litúrgica, o chamado entre terra e céus do “Rorate” do Advento, sua sublime
aspiração desolada e consolada; o “Glória laus” da festa de Ramos, caminhante e
verdejante; o “Exsultet” da noite Pascal; os grandes Aleluias da Páscoa, sob os
sinos a toda força; a lamentação extraterrena do ofício dos Mortos, seu
formidável e suplicante “Dies iræ”; o “Parce Domine” implorando contra as
calamidades públicas; o “Te Deum” fulgurante, sobre-humano das ações de graças
com seu caráter épico, toda essa magnificência cantada, a Igreja Católica dá ao
povo na magnificência monumental das catedrais, sob a magnificência radiosa dos
vitrais.
Jamais rei algum, na
sua glória, ofereceu a si mesmo tamanho tesouro; nunca os chefes de repúblicas
se reunirão de tal modo para o Fausto destinado a seus convidados de honra.
Mas a Igreja
Católica, na inigualável igualdade de sua caridade universal, abriu e abrirá
esse tesouro, de século em século, ao menor de seus pequenos, ao primeiro morto
que entrar, ao primeiro mendigo que passar.
E se por
infelicidade, um dia, não pudesse ela mais proporcionar essa magnificência ao homem,
que restaria ao homem que padece sob o jugo do trabalho para alegrar seu dia de
festa? Barulho de alto falantes, discursos de ministros... E os cavalos de
parque de diversões.
* * *
Perguntaram-me,
recentemente, através de qual ordem religiosa teria eu bebido tão profundamente
das fontes litúrgicas.
Até poucos anos,
jamais havia falado nem a monge, nem a freira, jamais havia posto os pés num
parlatório de convento.
Mas minha avó era uma
dessas senhoras francesas, que cantavam Vésperas todos os domingos, Completas
nos dias de festa e que seguiam minuciosamente, nos seus grossos livros de
folhas amareladas, as Trevas da Semana Santa e as Grandes Matinas de Natal e do
Dia dos Mortos.
Mal tinha eu nove
anos, mas ela me fazia acompanha-la. Para mim, era como entrar num mundo
sublime, fora do outro, onde Deus e o homem trocavam palavras estranhas que não
tinham sentido nos outros países.
Na noite de Todos os
Santos, às 6 horas, penetrávamos as duas na grande Noite da Catedral, que não
tinha àquela hora, sob as abóbadas prodigiosas, nem começo nem fim.
Poucos fiéis pelas
cadeiras. Da entrada até o altar, a Igreja estava revestida do negro dos
grandes funerais que, do coro, algumas velas assustadas, tremeluzindo na
penumbra, mal iluminavam.
Na torre, dobrava o
carrilhão, esse admirável carrilhão da Catedral de Auxerre, grupo trágico de
sinos profundos que soavam bruscamente, em soluços, cinco ou seis notas
dilacerantes e recaiam no silêncio de onde, novamente, tornavam a sair após
alguns minutos de angústia, com lágrimas tenebrosas que haviam recolhido em não
se sabe que poços de dor e medo.
Eu esperava,
arrepiada, cada volta desses hinos pungentes... Enquanto isso, cantávamos com
os padres, os salmos de David, as lamentações de Jó. Lá ouvi — com nove anos —
o inconsolável grito do homem, grito que entrou em mim, e não saiu mais.
Creio que esse Jó,
esse David, foram meus verdadeiros, meus primeiros Pais entre todos aqueles que
são para nós os Poetas, os Profetas e os Gênios.
Mesmo sendo ignorante
(não sei mais latim do que minha mãe, minha avó e suas criadas), sou, de igual
modo, tão apegada ao latim de nossos ofícios que sofro grande ausência quando a
versão francesa — secularizada — dele nos priva.
Como saber o porquê
dessa nostalgia espiritual? Talvez exista no nosso canto litúrgico que do fundo
dos séculos tantas bocas bem-aventuradas nos transmitiram, um Dom quase
sacramental do Espírito de Pentecostes, que falava misteriosamente às almas
simples pelos vocábulos sagrados, os quais querem agora nos tirar porque, sendo
nós insuficientemente instruídos, não saberíamos escuta-los bem.
Oh! claro, que não os
entendíamos todos, apesar dos nossos livros de Missa, mas deixávamos que essas
palavras passassem sobre nós como uma corrente de graça. As palavras muitas
vezes repetidas, do “Veni Creator”, “Miserere”, “De Profundis”, “Magnificat”,
“Te Deum” e de todos os outros cantos tinham se tornado em nós nossa riqueza
familiar, pela grande magnificência aberta da Igreja Católica, cuja oração
secular eleva os humildes sem que eles o saibam e os valoriza, melhor que
lições e discursos de todos os tempos em todos os lugares do mundo.
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*(Publicado na Revista Permanência, Maio-Junho
de 1982. Traduzido por Afonso dos Santos de “Itineraires” n° 257).