Mais um dia Senhor, vai começar agora
para nós.
Mais um dia vai escorrer das tuas mãos
eternas como aqueles sete primeiros, de que fala o Gênesis.
E nós mesmos, Senhor, que somos nós,
senão pequenas gotas, ainda presas às tuas mãos, gotas em que se reflete todo o
universo, em que se reflete a tua Face?! Pois se retirasses, Senhor, as tuas
mãos, cairíamos todos no nada, no nada de onde nos tiraste, de onde nos tiras a
cada instante....
Se retirasses, Senhor, a tua mão,
voltaria ao pó de que foi tirado aquele que está falando, voltaria ao pó aquele
que está ouvindo, e estalar-se-ia – corda partida de instrumento – a cadeia de
vibrações que os liga, esta breve manhã, pelo teu longo espaço.
Teus, Senhor, são os dias; tuas, as
horas; tuas, as nossas vidas, que por ambos deslizam.
Mais eis, Senhor, que vão começar
dentro em pouco as horas roubadas, e as vidas roubadas também. Pois eis que
vamos começar em breve a esquecer-te na faina do dia, ou, que sabe mesmo,
renegar-te?
Esquecer-te, Senhor, será mister, pois
não temos a força de continuamente fitar-te, de continuamente ver-te a Face nas
faces que vamos encontrar, que ao nosso lado já cruzam...
Mas renegar-te, Senhor, eis o que é
duro. Surpreender-te no olhar que implora uma palavra, e não ter a coragem de
um gesto, – eis, Senhor, o que é terrível; eis, Senhor, o que um dia nos será
cobrado por ti, que nos sustentas agora nas tuas mãos, pobres gotas que somos.
Quantos, Senhor, não se esqueceram da
sua origem e não se encheram de ar, bolhas ridículas, ao sabor do vento?
Mas a nós, Senhor, que ainda
conhecemos o calor da tua palma, guarda-nos na tua mão. De onde nos podes
livremente deixar tombar, mas onde nos podes, também livremente reter, para as
pérolas da tua coroa...
E há gotas, Senhor, translucidas,
retiradas – ai de nós! – do nosso contato, e que já introduziste no teu celeiro
celeste ou purificas ainda em benfazeja chama.
São os santos que iremos celebrar no
dia primeiro, ou as almas por que iremos rezar no dia dois de novembro.
Mas entre essas todas, que gota mais
diáfana e pura, que aquela que fizeste um dia subir da terra ao teu encontro em
lúcida assunção?
Gota pequena aquela, que trazia no seu
nome o mar, e que trouxera, no seu seio cristalino, o próprio Deus dos mares e
das gotas...
*****
D. Marcos BARBOSA (1915-1997). Crônica publicada na
Revista A Ordem, Novembro-Dezembro de 1950, n. 5-6, pp. 303-304.
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