quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

PEQUENAS GOTAS...

Mais um dia Senhor, vai começar agora para nós.
Mais um dia vai escorrer das tuas mãos eternas como aqueles sete primeiros, de que fala o Gênesis.
E nós mesmos, Senhor, que somos nós, senão pequenas gotas, ainda presas às tuas mãos, gotas em que se reflete todo o universo, em que se reflete a tua Face?! Pois se retirasses, Senhor, as tuas mãos, cairíamos todos no nada, no nada de onde nos tiraste, de onde nos tiras a cada instante....
Se retirasses, Senhor, a tua mão, voltaria ao pó de que foi tirado aquele que está falando, voltaria ao pó aquele que está ouvindo, e estalar-se-ia – corda partida de instrumento – a cadeia de vibrações que os liga, esta breve manhã, pelo teu longo espaço.
Teus, Senhor, são os dias; tuas, as horas; tuas, as nossas vidas, que por ambos deslizam.
Mais eis, Senhor, que vão começar dentro em pouco as horas roubadas, e as vidas roubadas também. Pois eis que vamos começar em breve a esquecer-te na faina do dia, ou, que sabe mesmo, renegar-te?
Esquecer-te, Senhor, será mister, pois não temos a força de continuamente fitar-te, de continuamente ver-te a Face nas faces que vamos encontrar, que ao nosso lado já cruzam...
Mas renegar-te, Senhor, eis o que é duro. Surpreender-te no olhar que implora uma palavra, e não ter a coragem de um gesto, – eis, Senhor, o que é terrível; eis, Senhor, o que um dia nos será cobrado por ti, que nos sustentas agora nas tuas mãos, pobres gotas que somos.
Quantos, Senhor, não se esqueceram da sua origem e não se encheram de ar, bolhas ridículas, ao sabor do vento?
Mas a nós, Senhor, que ainda conhecemos o calor da tua palma, guarda-nos na tua mão. De onde nos podes livremente deixar tombar, mas onde nos podes, também livremente reter, para as pérolas da tua coroa...
E há gotas, Senhor, translucidas, retiradas – ai de nós! – do nosso contato, e que já introduziste no teu celeiro celeste ou purificas ainda em benfazeja chama.
São os santos que iremos celebrar no dia primeiro, ou as almas por que iremos rezar no dia dois de novembro.
Mas entre essas todas, que gota mais diáfana e pura, que aquela que fizeste um dia subir da terra ao teu encontro em lúcida assunção?
Gota pequena aquela, que trazia no seu nome o mar, e que trouxera, no seu seio cristalino, o próprio Deus dos mares e das gotas...
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D. Marcos BARBOSA (1915-1997). Crônica publicada na Revista A Ordem, Novembro-Dezembro de 1950, n. 5-6, pp. 303-304.


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