Gertrud VON LE FORT (1876-1971)*
Uma curiosa constatação se impõe: cada
vez que se trata da Mãe, a arte, quando verdadeiramente grande, sugere apenas,
não exprime nada. A grande poesia dramática se abstém, ou quase, de toda
indicação: com o “Rei Lear”, Shakespeare escreveu a tragédia do pai, mas a
tragédia da mãe está ausente. Não temos dele senão o grito de Constance, no rei
João, e, no “Coriolano”, as duas mães, cuja única função é servir de réplica ao
herói masculino do drama. A mais velha faz ressaltar esta verdade: a mãe não se
satisfaz de agir e brilhar senão em seu filho. A mais moça, ouvimo-la chamar:
“meu doce silêncio”. A surpreendente beleza deste epiteto significará que a
arte também realiza o que Ruth Schaumann diz de cada mulher: “Quando alguma
coisa a comove, ela se cala?”
O silêncio da arte não será o indicio
de que a arte conhece bem a mãe? A grande literatura dramática parece
confirma-lo. A hora heroica da mulher, e todo verdadeiro grama é construído em
torno de uma hora heroica, não se manifesta por ações visíveis, como a hora
heroica dos homens, mas se realiza no seio do mais profundo recolhimento. Assim
como escapa aos olhos, escapa também à representação dramática.
Outra razão ainda: o elemento gerador
do drama não é somente a ação heroica, é também a lei interior de uma figura
excepcional em seu desenvolvmento. Ora, a mãe não é uma figura excepecional,
ela não tem lei própria, sua lei é o filho, tudo o que tem fora de seu centro
de gravidade é sempre mais ou menos impessoal. A mãe é a mulher fora do tempo,
porque é imutável. Seu amor não conhece desenvolvimento, desde o primeiro
momento ele lá está, não há progresso no imutável. O amor de uma mãe não pode
ser acrescido, isto poderia fazer supor que ele tivesse sido menor. Não se pode
falar de progresso a propósito dos diferentes períodos da vida materna. Estes
períodos são semelhantes as estacoes da natureza: primavera e outono não são
etapas de desenvolvimento, são partes de um círculo infindável.
A hora do parte, a mãe engaja sua
vida, sem retorno, por seu filho: depois do nascimento, ela perde a disposição
de sua vida, para remetê-la à criança. A mulher fora do tempo é a mulher que se
perde no rio das gerações: a mulher em maternidade é a mulher que desapareceu
em seu filho.
Ela deu um filho ao mundo
Alta alegria, profunda pena,
Ei-la agora toda perdida
Em sua muda ternura.
(Friedrich Hebbel)
O amor imenso, o amor de natureza que
jorra da mãe e que forma, por assim dizer, o clima em que o filho vai
conquistar seus traços próprios e sua personalidade, este amor impõe à mãe,
renúncia e sacrifício, até o risco de perder seus traços próprios e sua própria
personalidade. E esta perda é ainda o mesmo sacrifício, de um heroísmo não
apenas total, mas também desprovido de patético. A hora heroica do parto se
efetiva no segredo de uma alcova nupcial. A mãe transmite a vida ao infinito,
mas sua própria vida se escoa no infinito de pequenas, ínfimas fadigas.
Feito de silencio, o heroísmo da mãe é
feito também do quotidiano e do ordinário de cada dia. O que vale dizer que o
gênero literário que convém à figura da mãe não é o drama, imagem dos grandes
destinos, mas a arte burguesa da vida quotidiana, o romance. Este tem por
traços formais esta ausência do patético, esta simplicidade, esta monotonia que
caracterizam o destino e o heroísmo maternos. Suas afinidades pelo detalhe do
dia a dia o qualificam mais especialmente ainda para retratar com amor este
infinito desdobrar de acontecimentos pequenos, minúsculos, que tecem a trama de
uma vida de mãe.
Ao contrário, a verdadeira grandeza da
mãe, o que ela tem, para lá da psicologia, do universal, de imutável, de
elementar, de natural – tudo o que faz da mãe mulher fora do tempo – não o
encontramos no romance, sempre ligado a um tempo, mas ingenuidade da arte
popular. Tudo o que faz da mãe uma estranha ao drama, destina-a ao conto e à
legenda. Lá, não se trata de indivíduos, mas de tipos. Num conto, a mãe é
sempre a mesma. É sobretudo quando os contos fazem aparecer a mãe morta, que
eles mostram a constância de seu amor, a indissolubilidade dos laços que a
prendem a seu filho. No fundo, nenhuma fábula acredita que a mãe possa morrer.
A morte não tem poder sobre o amor, ela nada pode sobre o que não muda.
Não há apenas um só nascimento, o do
filho pela mãe. Há também o nascimento da mãe pelo filho. “Os filhos nos
acordem, os filhos nos dizem: tu és áspera, torna-te doce”, escreve Ruth
Schaumann.
O soldado desconhecido, das guerras,
não é ele filho da mãe desconhecida?
É da essência mesma da maternidade
vencer o tempo. A mulher que gera um filho, leva a vida ao infinito, a mulher
guardiã e protetora traz, no tempo mesmo, uma parte do infinito.
*****
*Excerto do livro "A mulher eterna", publicado no jornal Tribuna da Imprensa, p.5, de 27 de
maio de 1950. A obra referida está disponível para download: https://mega.nz/#!YZsXCAbQ!PBKYcpIHvjH3OMdXaGSc6hqJKCdOi7AY6j68aMC-XO8
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