quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A PRIMAZIA DA VIDA EXTERIOR SOBRE A VIDA INTERIOR


Costumamos dividir o mundo moderno em Velho e Novo Mundo; em mundo totalitário e mundo democrático; países para lá e para cá da Cortina de Ferro; mundo socialista e mundo capitalista; Oriente e Ocidente; ou mais amplamente ainda, em mundo moderno e mundo eterno.
Todas essas divisões são mais ou menos legítimas e a última se aproxima muito da que tomamos por base deste ensaio, o mundo exterior e o mundo interior. Aqui, porém, prescindimos da própria noção de tempo e colocamos o homem perante os dois mundos que constituem a sua própria natureza completa, pois o mundo interior não é uma opção, mas uma síntese. E o homem completo, isto é, o homem normal, é aquele que vive interiormente a sua vida exterior e não sepulta em si, egoisticamente, a sua vida interior.
É certo, entretanto, que uma das marcas do nosso tempo é a primazia da vida exterior sobre a vida interior, quando não o esmagamento desta por aquela. O maior perigo que corremos, hoje em dia - em face do curso que vai tomando o progresso da técnica, com a absorção do homem pela Máquina, e a hipertrofia das instituições políticas e econômicas, com a absorção do homem pelo Estado, pelo Partido ou pela Fábrica -, o maior perigo é precisamente essa anulação da personalidade pela extroversão sistemática do homem e de sua vida profunda.
Um biologista materialista, JEAN ROSTAND, resumindo as conclusões do seu próximo livro, Ce que je crois, rasga os seguintes horizontes para a ciência biológica de amanhã, que vai tentar fazer aquilo com que BERNARD SHA w sonhava ao dizer que "what can be done with a wolf, can be done with a man"! Isto é, se foi possível fazer de um animal feroz como o lobo um animal manso como o cachorro, também será possível fazer de um ser imperfeito, como o homem de hoje, um ser perfeito, como o homem de amanhã. Esquecido, o sofista do século XX, de que foi o homem que fez do lobo um cachorro e não o próprio lobo. E, portanto, só Deus, dizemos nós os que não julgamos que o homem seja um deus, poderia mudar a natureza humana, como só a Sua graça pode aperfeiçoá-la, ajudando a própria virtualidade dessa natureza. É possível que venham a ser um fato esses novos horizontes que os biologistas abrem às intervenções do homem sobre a natureza, inclusive a própria natureza humana. JEAN ROSTAND chega a crer que "aparentemente se poderá prolongar, no futuro, de modo sensível a duração da vida humana...; outros muitos problemas serão resolvidos: determinar-se-á à vontade o sexo das crianças... talvez a ectogênese ou gravidez de bocal (como ALDOUS HUXLEY já previra, com humor, no seu This brave New World). Pelo emprego dos hormônios ou de medicamentos apropriados ou ainda por uma correção cirúrgica dos centros nervosos, modificar-se-ão a personalidade, o temperamento, o caráter. Suscitar-se-ão artificialmente aptidões e virtudes" (sic).
Esse biologista materialista, que acredita serem as virtudes consequências dos hormônios, como VIRCHOW, no século passado, fazia do bem e do mal secreções como o açúcar ou o vitríolo, não fecha, entretanto, os olhos aos perigos dessa ditadura da técnica biológica.
"Será difícil'' diz ele, "impedir que a coletividade não abuse do seu poder em relação àqueles que a constituem. Haverá sempre um equilíbrio difícil de alcançar entre a preocupação do interesse coletivo e o respeito da liberdade individual. Não valeria a pena que a natureza fizesse de cada indivíduo um ser único, para que a sociedade reduzisse a humanidade a não ser mais do que uma coleção de iguais."
Ou, como nós diríamos, não valeria a pena que Deus criasse o homem à sua imagem e semelhança, para que o homem se reduzisse apenas à semelhança e imagem dos animais. E que tivesse colocado no coração humano o amor da liberdade para que ele procurasse apenas novas formas de escravidão.
A libertação do homem não está nas coisas.
Está em si próprio. Não está na vida exterior. Está no seu mundo íntimo. Não está na técnica biológica ou física. Está na virtude. O progresso da humanidade não depende da perfeição de suas máquinas, mas da perfeição daqueles que as souberem manejar.
A técnica não é um bem ou um mal em si. É uma arma de dois gumes, que serve cegamente ao bem e ao mal, conforme a luz dos olhos de quem a manejar.
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Alceu AMOROSO LIMA. Meditação sobre o mundo interior, Rio de Janeiro: Agir, 1955, pp. 9-13.


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