Costumamos dividir o mundo moderno em
Velho e Novo Mundo; em mundo totalitário e mundo democrático; países para lá e para cá da Cortina de
Ferro; mundo socialista e mundo capitalista; Oriente e Ocidente; ou mais
amplamente ainda, em mundo moderno e mundo eterno.
Todas
essas divisões são mais ou menos legítimas e a última se aproxima muito da que
tomamos por base deste ensaio, o mundo exterior e o mundo interior. Aqui,
porém, prescindimos da própria noção de tempo e colocamos o homem perante os
dois mundos que constituem a sua própria natureza completa, pois o mundo
interior não é uma opção, mas uma síntese. E o homem completo, isto é, o homem
normal, é aquele que vive interiormente a sua vida exterior e não sepulta em
si, egoisticamente, a sua vida interior.
É
certo, entretanto, que uma das marcas do nosso tempo é a primazia da vida
exterior sobre a vida interior, quando não o esmagamento desta
por aquela. O maior perigo que corremos, hoje em dia - em face do curso que vai
tomando o progresso da técnica, com a absorção do homem pela Máquina, e a
hipertrofia das instituições políticas e econômicas, com a absorção do homem
pelo Estado, pelo Partido ou pela Fábrica -, o maior perigo é precisamente essa
anulação da personalidade pela extroversão sistemática do homem e de sua vida
profunda.
Um
biologista materialista, JEAN ROSTAND, resumindo as conclusões do seu próximo
livro, Ce que je crois, rasga os
seguintes horizontes para a ciência biológica de amanhã, que vai tentar fazer aquilo
com que BERNARD SHA w sonhava ao dizer que "what
can be done with a wolf, can be done with a man"! Isto é, se foi
possível fazer de um animal feroz como o lobo um animal manso como o cachorro,
também será possível fazer de um ser imperfeito, como o homem de hoje, um ser
perfeito, como o homem de amanhã. Esquecido, o sofista do século XX, de que foi
o homem que fez do lobo um cachorro e não o próprio lobo. E, portanto, só Deus,
dizemos nós os que não julgamos que o homem seja um deus, poderia mudar a
natureza humana, como só a Sua graça pode aperfeiçoá-la, ajudando a própria virtualidade
dessa natureza. É possível que venham a ser um fato esses novos horizontes que
os biologistas abrem às intervenções do homem sobre a natureza, inclusive a
própria natureza humana. JEAN ROSTAND chega a crer que "aparentemente se poderá prolongar, no futuro, de modo sensível a
duração da vida humana...; outros muitos problemas serão resolvidos:
determinar-se-á à vontade o sexo das crianças... talvez a ectogênese ou
gravidez de bocal (como ALDOUS HUXLEY já previra, com humor, no seu This
brave New World). Pelo emprego dos
hormônios ou de medicamentos apropriados ou ainda por uma correção cirúrgica
dos centros nervosos, modificar-se-ão a personalidade, o temperamento, o
caráter. Suscitar-se-ão artificialmente aptidões e virtudes" (sic).
Esse
biologista materialista, que acredita serem as virtudes consequências dos
hormônios, como VIRCHOW, no século passado, fazia do bem e do mal secreções
como o açúcar ou o vitríolo, não fecha, entretanto, os olhos aos perigos dessa
ditadura da técnica biológica.
"Será difícil''
diz ele, "impedir que a coletividade
não abuse do seu poder em relação àqueles que a constituem. Haverá sempre um
equilíbrio difícil de alcançar entre a preocupação do interesse coletivo e o
respeito da liberdade individual. Não valeria a pena que a natureza fizesse de
cada indivíduo um ser único, para que a sociedade reduzisse a humanidade a não
ser mais do que uma coleção de iguais."
Ou,
como nós diríamos, não valeria a pena que Deus criasse o homem à sua imagem e
semelhança, para que o homem se reduzisse apenas à semelhança e imagem dos
animais. E que tivesse colocado no coração humano o amor da liberdade para que ele
procurasse apenas novas formas de escravidão.
A
libertação do homem não está nas coisas.
Está
em si próprio. Não está na vida exterior. Está no seu mundo íntimo. Não está na
técnica biológica ou física. Está na virtude. O progresso da humanidade não
depende da perfeição de suas máquinas, mas da perfeição daqueles que as
souberem manejar.
A
técnica não é um bem ou um mal em si. É uma arma de dois gumes, que serve
cegamente ao bem e ao mal, conforme a luz dos olhos de quem a manejar.
*****
Alceu AMOROSO LIMA. Meditação
sobre o mundo interior, Rio de Janeiro: Agir, 1955, pp. 9-13.
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