quinta-feira, 21 de junho de 2018

UM FRAGMENTO DE CHARLES PÉGUY


Nada é tão belo quanto uma criança que adormece a rezar, diz Deus.
Eu vo-lo digo, nada é tão belo no mundo.
Jamais vi algo tão belo no mundo.
E, no entanto, já vi muita beleza no mundo,
E de beleza eu entendo. Minha criação transborda de belezas.
Minha criação transborda de maravilhas
E são tantas que nem sei onde metê-las todas.
Vi milhões e milhões de astros rolarem sob meus pés, como as areias do mar.
Vi dias ardentes como chamas,
Dias de verão de junho, julho e agosto.
Vi noites de inverno estendidas como um manto.
Vi noites de verão, serenas e brandas, que caíram como se fossem o paraíso
Todo constelado de estrelas.
Vi os outeiros do Mosa e as igrejas que são minhas casas.
E Paris e Reims e Ruão, e catedrais que são meus palácios e meus castelos.
Tão belos que os guardarei no céu.
Vi a capital do reino e Roma, capital da cristandade.
Ouvi cantarem a missa e as vésperas triunfantes.
E vi as planícies, e vi as colinas e os vales de França,
Que são mais belos que tudo.
Vi o profundo mar e a floresta profunda, e o coração profundo do homem.
Vi corações devorados pelo amor
Durante a vida inteira
Arrebatados de caridade
Ardendo como chamas.
Vi mártires tão imbuídos de fé
Que, postos no ecúleo, resistiram como uma rocha
Sob os dentes de ferro.
(Como um soldado que resistisse sozinho a vida inteira
Por fé
Em seu general (aparentemente) ausente.)
Vi mártires flamejantes como archotes
Preparando-se para as palmas sempre verdes.
E vi, como orvalho sob as garras de ferro,
Gotas de sangue que resplendiam como diamantes.
E, como orvalho, vi lágrimas de amor
Que durarão mais tempo que as estrelas do céu.
E vi olhares de prece, olhares de ternura,
Arrebatados de caridade,
Que brilharão eternamente, em noites e noites.
Vi também vidas inteiras, do nascimento à morte,
Do batismo ao viático,
Desenrolarem-se como um belo novelo de lã.
Mas isto eu digo, diz Deus, não conheço nada tão belo em todo o mundo
Quanto uma criancinha que adormece recitando suas orações
Sob as asas de seu anjo da guarda
E que ri para os anjos quando começa a adormecer
E que se põe a baralhar tudo e não compreende mais nada
E que mistura as palavras do Pai-Nosso com as da Ave-Maria, sem ordem alguma,
Ao mesmo tempo que um véu já desce sobre suas pálpebras
O véu da noite sobre seu olhar e sua voz.
***** 
Charles Péguy. De "Le Mystère des saints innocents".
Tradução de Sergio Pachá.


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