Nada é tão belo quanto uma criança que
adormece a rezar, diz Deus.
Eu vo-lo digo, nada é tão belo no
mundo.
Jamais vi algo tão belo no mundo.
E, no entanto, já vi muita beleza no
mundo,
E de beleza eu entendo. Minha criação
transborda de belezas.
Minha criação transborda de maravilhas
E são tantas que nem sei onde metê-las
todas.
Vi milhões e milhões de astros rolarem
sob meus pés, como as areias do mar.
Vi dias ardentes como chamas,
Dias de verão de junho, julho e
agosto.
Vi noites de inverno estendidas como
um manto.
Vi noites de verão, serenas e brandas,
que caíram como se fossem o paraíso
Todo constelado de estrelas.
Vi os outeiros do Mosa e as igrejas
que são minhas casas.
E Paris e Reims e Ruão, e catedrais
que são meus palácios e meus castelos.
Tão belos que os guardarei no céu.
Vi a capital do reino e Roma, capital
da cristandade.
Ouvi cantarem a missa e as vésperas
triunfantes.
E vi as planícies, e vi as colinas e
os vales de França,
Que são mais belos que tudo.
Vi o profundo mar e a floresta
profunda, e o coração profundo do homem.
Vi corações devorados pelo amor
Durante a vida inteira
Arrebatados de caridade
Ardendo como chamas.
Vi mártires tão imbuídos de fé
Que, postos no ecúleo, resistiram como
uma rocha
Sob os dentes de ferro.
(Como um soldado que resistisse
sozinho a vida inteira
Por fé
Em seu general (aparentemente)
ausente.)
Vi mártires flamejantes como archotes
Preparando-se para as palmas sempre
verdes.
E vi, como orvalho sob as garras de
ferro,
Gotas de sangue que resplendiam como
diamantes.
E, como orvalho, vi lágrimas de amor
Que durarão mais tempo que as estrelas
do céu.
E vi olhares de prece, olhares de
ternura,
Arrebatados de caridade,
Que brilharão eternamente, em noites e
noites.
Vi também vidas inteiras, do
nascimento à morte,
Do batismo ao viático,
Desenrolarem-se como um belo novelo de
lã.
Mas isto eu digo, diz Deus, não
conheço nada tão belo em todo o mundo
Quanto uma criancinha que adormece
recitando suas orações
Sob as asas de seu anjo da guarda
E que ri para os anjos quando começa a
adormecer
E que se põe a baralhar tudo e não
compreende mais nada
E que mistura as palavras do Pai-Nosso
com as da Ave-Maria, sem ordem alguma,
Ao mesmo tempo que um véu já desce
sobre suas pálpebras
O véu da noite sobre seu olhar e sua
voz.
Charles
Péguy. De "Le Mystère des saints innocents".
Tradução de Sergio Pachá.
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