quinta-feira, 3 de maio de 2018

RESSURREIÇÃO DA CARNE


Lauro de Araújo Barbosa* (1915-1997)

Teu corpo, Perfeito como o vaso do oleiro,
Em que eu bebi a essência de tu'alma,
Há de voltar ao solo,
De onde vem a argila.

Tuas mãos,
Que se ergueram numa oferta,
E se puseram sobre as minhas num gesto de noivado,
Hão de tonar-se em humus,
De onde vem o lírio.

Teu cabelo,
Que cobria tua cabeça como um véu,
Diante da minha majestade de homem,
Há de voltar às minas,
De onde vem o auro.

Teus olhos,
Carvões desoladores,
Que queimaram a minh'alma e purificaram o meu corpo,
Se apagarão no céu,
De onde vem a luz.

Tua boca, Livro purpureo,
Que guardava as palavras da Sabedoria,
Mergulhará no mar,
De onde o coral vem.

Teus gestos,
Sóbrios como um culto,
Que marcaram o límite do meu mundo,
Hão de perder-se no espaço,
Como um vôo ferido.

Tua voz,
Que aplacava a minha ira
E chegava à torre do meu exílio
Há de se partir como a corda, de onde vem o som.

Teus passos,
Que maracaram sulcos na minha carne,
Hão de se perder como o rastro do peregrino,
Que a areia do deserto apaga
Na direção incerta.

Mas um dia,
Ao soar das Trombetas,
As tuas particulas desagregadas,
Entradas na formação de outros mundos,
De novo formarão um todo perfeito,
Sem ruga e sem mancha.

Então os anjos,
Com as suas asas de fogo,
Longas e rubras,
Formarão um círculo em torno do teu corpo,
Para defendê-lo;
E ele será como a cidade invicta,
Onde ninguém Penetra.

Mas quando eu chegar.
Transfigurado,
Na minha veste de nupcias,
Os anjos se afastarão,
Silenciosos...

E eu, comovido
Ante a tua beleza,
Que nada iguala,
Apenas tocarei, com medo,
A orla do teu vestido.
*****



*Lauro de Araújo Barbosa é o nome de batismo de DOM MARCOS BARBOSA, o monge poeta, tradutor de "O Pequeno Príncipe", a magnífica obra de Saint-Exupéry, e também, entre outras, de "O Anúncio feito a Maria" de Paul Claudel. A poesia que ora publicamos foi extraída da Revista A Ordem, 1937, n. 80, p. 51-53.




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