Reginald Garrigou-Lagrange O.P (1877-1964)
Fortis est ut mors dilectio: o que mais impressiona no amor de
Jesus, quer por seu Pai, quer por nossas almas, é a união maravilhosa e muito
íntima da mais profunda ternura e da força a mais heróica no sofrimento e na
morte: Fortiter et suaviter.
Estas duas qualidades do amor estão,
muitas vezes, separadas em nós e no entanto só podem viver intimamente unidas.
A ternura sem a força torna-se langorosa e piegas, a força sem nenhuma
suavidade, transforma-se em rudeza e amargura1.
Ninguém pode exprimir o que foi a
ternura de amor filial de Jesus por seu Pai; se ele amava ternamente a Virgem
Maria, quanto mais ainda seu Pai, a quem rendia perpétua ação de graças e
adoração! Esta ternura sobrenatural se derramava e se derrama continuamente
sobre as almas, não apenas as de um certo país ou tempo ou sobre um grupo
restrito de alguns amigos, mas sobre todas as almas de todas as gerações para
lhes dar a vida eterna.
Este amor de Cristo tão terno é também
mais forte que a morte, mais forte que o pecado e que o espírito do mal. Foi
ele que levou Nosso Senhor a se oferecer como vítima para pagar em nosso lugar,
para nos salvar, dando a Deus uma reparação infinita que lhe agrada mais do que
todo o desgosto causado pelos pecados: Cor Jesu, fornax ardens
caritatis -- eis todas as ternuras e todas as energias do amor
admiravelmente fundidas. O Coração de Jesus é assim o mais puro espelho da
Misericórdia e da Justiça, as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus.
Os membros do corpo místico de Cristo
devem cada vez mais participar de sua vida para se tornarem semelhantes a Ele.
A santa humanidade do Salvador nos comunica progressivamente as graças que
mereceu por nós na Cruz, influxo da cabeça do corpo místico sobre seus membros.
Por este influxo Nosso Senhor quer nos assimilar, cada vez mais, pelo batismo,
absolvição, comunhão freqüente, cruzes ou purificações necessárias a nosso
avanço, até a extrema-unção e a nossa entrada no céu. Na vida de muitos santos
vê-se essa assimilação progressiva no modo pelo qual neles são reproduzidos os
mistérios da infância de Jesus, sua vida oculta, depois sua vida apostólica e
por fim sua vida dolorosa2.
Ora, uma das grandes marcas do espírito
de Jesus em uma alma, é a reprodução nesta alma dos dois efeitos que derivam em
Nosso Senhor da plenitude da graça.
Primeiro, a paz, a
tranqüilidade da ordenação cada vez melhor de todos os sentimentos, de todos os
quereres subordinados ao amor de Deus e das almas em Deus, amor que cresce
continuamente pela influência atual de Cristo.
Em seguida, a aceitação da cruz,
para seguir o Mestre, como ele disse; aceitação com paciência, do
contrário a pena aumenta sem fruto; reconhecimento, pois está aí
uma graça escondida, vê-se melhor quando o fardo é levado
sobrenaturalmente; com amor, pois a cruz é Jesus crucificado, que
vem a nós para reproduzir em nós seus próprios traços. Este amor dá o abandono
e a paz. Aí se encontra a verdadeira soberania, a contemplação divina3.
O austero Luiz de Chardon diz com
profundidade a este respeito, comentando São Paulo:
"Depois
de termos admirado a violenta e insaciável inclinação do espírito de Jesus para
a Cruz compreenderemos melhor como Ele a distribui pelas almas que lhe pertencem pelos vínculos da
graça... Entendemos igualmente porque quanto maior é a elevação da alma em
união com o espírito de Jesus tanto maior será sua obrigação quanto ao sofrimento...
Também seria uma desordem da
graça e das máximas do santo amor, se membros alimentados por confeitos estivessem ligados a uma cabeça
transpassada de espinhos...
"Os
membros são santificados pela mesma graça, que está em Jesus como em sua fonte
universal. Ora, esta graça de Cabeça é comunicada a Jesus para a finalidade de
sua missão, para que ele pague pelos pecados dos membros à justiça rigorosa de
Deus. Por conseguinte, ele contrai a obrigação amorosa de sofrer provocando em
seu espírito uma inclinação violenta que o transporta continuamente para a
Cruz. É indispensável que esta graça incline
do mesmo modo, com o mesmo rigor as almas predestinadas, a fim de que o corpo místico não pareça um
todo monstruoso na ordem da graça, onde o espírito de Jesus seria
contrário a si mesmo,
sendo um nos membros e outro na Cabeça...
"Assim,
porque a graça decorre da alma de Jesus como de sua fonte original onde ela
produz um impulso dirigido para o fim pelo qual Jesus se fez homem, é uma
necessidade que a graça cause esta mesma disposição naqueles que recebem a
dignidade de nela participarem"4.
Este é um efeito da graça
cristã como tal. A graça, por sua essência, é uma participação da
natureza divina, mas, pelo fato de que nos é transmitida pelo Cristo, tem uma
modalidade especial que nos configura a Ele como demonstra
Santo Tomás quando pergunta se a graça sacramental, em particular a graça
batismal, como tal, acrescenta alguma coisa à graça das virtudes e dos dons
como a que possuía Adão antes do pecado (III, q. 62, a. 2).
Luiz de Chardon acrescenta e une assim
a doutrina de um Tauler ou de um São João da Cruz à de Santo Tomás: "E
porque esta espécie de graça não pode ficar ociosa em uma alma... é ávida para
crescer e como só pode ter um crescimento considerável com a ajuda das cruzes... na
nudez da graça, da qual suspendeu os efeitos sensíveis, Deus não abandona a
alma à sua própria fraqueza. Nisto há o propósito de fazer a alma se
conhecer e se desprender de si mesma... aderindo somente a Deus... A união será
mais estreita e mais íntima quanto maior a separação de tudo mais.
"Daí que o mesmo amor é
ao mesmo tempo princípio de vida e princípio de morte...; unindo e
separando... afastando e causando adesões... A santidade de Deus comunicada
a suas criaturas produz uma privação geral de tudo o que é incompatível com sua
pureza imaculada5.
"Gloriosa morte... Rica de uma
fecundidade divina... Morte entretanto mais cruel do que aquela que é o dever
comum da natureza... pois só deixa tristes desolações nas almas! No entanto as
almas bem instruídas sobre as propriedades do Amor sagrado e
do fim que a santidade de Deus pretende com todas
estas provações, não quereriam trocar nem por um instante seu rigoroso
martírio pelas delícias embriagadoras do Paraíso, nem a cruel espera de sua
morte pela feliz vida da glória"6.
É fácil ver a aplicação deste princípio
na vida de Maria7. Como diz o historiador que repara o
esquecimento em que caiu a obra de Chardon: "Talvez, a atividade separante, simplificante, despojadora da graça
nunca tenha sido analizada com maior penetração"8.
Relendo atentamente o belo capítulo da
Imitação de Cristo (1. II, cap. XI): "Do
pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus", vê-se que a marca do
espírito de Cristo é a paz e o abandono no sofrimento, no acabrunhamento da
Paixão, que se reproduz em diversos graus nas almas para as purificar e para
fazê-las trabalhar na salvação do próximo em Nosso Senhor, com Ele e por Ele,
com os meios dos quais Ele mesmo se serviu. Jesus está assim, num certo
sentido, em agonia até o fim do mundo, no seu corpo místico até que este corpo
místico seja plenamente purificado e glorificado, até que se realize
perfeitamente a palavra do Mestre: "Venci o mundo", pela vitória
definitiva sobre o pecado, sobre o demônio e sobre a morte.
Deste ponto de vista sobrenatural da
fé, quando se contempla, digamos, com o olhar de Deus o que nos diz a santa
liturgia, vê-se o quanto ela ultrapassa infinitamente os mais sublimes elans da
poesia humana.
"Salve Crux
sancta, salve mundi gloria,
Vera spes nostra,
vera ferens gaudia,
Signum salutis,
salus in periculis,
Vitale lignum vitam
ferens omnium.
"Crux fidelis,
inter omnes arbor una nobilis: nula silva talem profert fronde, flore, germine:
dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinuit.
O magnum pietatis
opus! Mors mortua tunc est, in ligno quanto mortua Vita fuit.
Nos autem gloriari
oportet in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Crux benedicta, nitet Dominus qua
carne pependit, atque cuore suo vulnera nostra lavit".
Quando vossa alma dobrar-se sob o peso,
apoiai-vos sobre vosso crucifixo.
Concluamos com São Luiz Maria Grignion
de Montfort (L' Amour de la Divine Sagesse, 2a. P., cap. V):
"A Sabedoria
Eterna fez da Cruz seu tesouro e em sua Encarnação esposou-a com amor inefável;
durante toda sua vida, que não foi mais do que uma cruz contínua, carregou-a,
pediu-a com indizível alegria... Pregada finalmente e como que colada à cruz,
com alegria morreu abraçada à sua querida Cruz como num leito de honra e triunfo...
E não pensem que depois de sua morte, para melhor triunfar, a Sabedoria
Encarnada tenha se arrancado, tenha rejeitado a Cruz... Não querendo que honra
de adoração, mesmo relativa, seja prestada a criaturas, por mais altas que
sejam, como sua santíssima Mãe, reservou esta honra para sua querida Cruz e
somente a ela é devida. A Sabedoria Encarnada, no grande dia do Juízo Final,
acabará como o culto das relíquias dos santos, mesmo as dos mais respeitáveis;
mas quanto às relíquias da Cruz, enviará os primeiros serafins e querubins pelo
mundo para ajuntar os pedaços da verdadeira cruz que, por sua amorosa
onipotência, serão tão bem reunidos que não farão mais que uma só e a mesma
Cruz em que morreu, transportada assim pelos anjos... Precedida pela Cruz, colocada
sobre uma nuvem de brilho inigualável, a Sabedoria eterna julgará o mundo com a
Cruz e pela Cruz. Qual será então a alegria dos amigos da Cruz... Esperando
esse dia... a divina Sabedoria quer que a Cruz seja o sinal, o caráter, a arma
de todos os seus eleitos... Tendo encerrado tantos tesouros, tantas graças de
vida na Cruz só dá a conhecer esses tesouros aos mais escolhidos... Como é
preciso ser humilde, pequeno, mortificado, interior e menosprezado pelo mundo
para conhecer o mistério da cruz! A quem carrega e suporta essa cruz, a
Sabedoria Eterna dará um peso eterno de glória no céu".
*****
(De "L' Amour
de Dieu et la Croix de Jesus", Ed. du Cerf. 1o. vol., cap. VI, pág. 255.
Tradução de Anna Luiza Fleichman)
1.Ver sobre isto L. Chardon, La Croix de
Jesus, 3o. entretenimento, cap. VIII, onde o autor mostra como Deus quer a
ternura de suas criaturas para uni-las a sua força, e como Ele transforma esta
ternura em força divina. "Ele quer que o amor intensivo caminhe na alma
perfeita de par com o amor apreciativo e que a ternura dos sentimentos esteja
de acordo com a preferência do julgamento".
2.Ver encíclica de Pio XI, junho de 1928, Miserentissimus
Redemptor, sobre a reparação devida a Deus por todos os homens.
3.La Croix de Jesus, 1a. edição, pg. 119-121.
Nova edição (Lethielleux) T. I, pg. 14, 29, 43, 136; T. II, pg. 376, 450.
4.Cf. São Luix Grignion de Montfort, L' Amour
de la Divine Sagesse II P., cap. VI: "Meios de se obter a
sabedoria divina: 1.) desejo ardente; 2.) prece contínua; 3.) mortificação
universal; 4.) terna e verdadeira devoção à Santíssima Virgem."
5.La Croix de Jesus, ibid., pg. 125-128.
6.Ibid., pg. 146-147.
7.L. Chardon, ibid., no primeiro de seus três
"entretenimentos", mostra o que foi o "amor separante",
princípio de Cruz, na alma de Maria e dos apóstolos: são dez capítulos de
grande profundidade sobre o martírio interior da Santa Virgem. No terceiro de
seus "entretenimentos" ele descreve admiravelmente, à luz do mesmo
princípio, os grandes ápices da vida interior de Abraão, de Elias, de Jacob, de
Benjamin, da Esposa dos Cânticos, de Marta e de Madalena. Páginas admiráveis
onde a teologia mística doutrinal aparece como o coroamento normal da teologia
toda, tal como a conceberam Santo Agostinho, Santo Tomás e todos os grandes
mestres. O capítulo sobre Elías (3o. entretenimento, cap. 25) é digno de nota:
"Moisés dizia: "Apagai-me do livro da vida"; São Paulo pedia
para ser anátema por causa de seus irmãos! Mas estes desejos não tinham outro
efeito senão testemunhar o grande amor destas almas por seus irmãos... Não é
este o caso de Elias. Há cerca de três mil anos que Elias está privado da visão
de Deus, e estará privado até o fim do mundo, para satisfazer desejos que
participam da imensidade divina... Elias está reservado... para lutar contra o
Anticristo".
8.Bremond, Histoire Litt. du Sentiment
Religieux en France, t. VIII, pg. 43. Não sei se Chardon leu São João
da Cruz, em todo caso ele está imbuído de Tauler de quem expõe a doutrina.
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