Gustavo Corção*
A
comemoração litúrgica da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na dor
consumou nosso resgate, é uma lição repetida, é uma sabatina dos dois lados
essenciais de nossa vida: o lado Cruz em que Nosso Senhor assumiu todas as
nossas dores, convidando-nos a assim nos associarmos à sua obra, e descarregou
com seu sangue a tensão de inimizade entre o homem e Deus; o lado Ressurreição
com que ultrapassa tudo quanto poderíamos desejar. Para descrever o contraste
da obra redentora São Paulo nos diz que “onde abundou o pecado superabundou a
graça”, de onde poderíamos tirar várias conclusões de júbilo transbordante:
onde abundaram tristeza e lágrima, superabundou a alegria. Ainda vemos essa
alegria da Glória no lumem fidei, na lamparina da Fé que nos mostra
tudo em sinais enigmas; mas um dia, se não opusermos a nossa vontade à vontade
de Deus, veremos tudo o que estava escondido, e tudo resplandecerá no lumem
Gloriæ.
O
“mundo inimigo” que é o mundo, mas é um mundo, um Reino com seu Príncipe, e com
seus clérigos nos trânsfugas que querem fundar a “nova Igreja”, que é uma
anti-Igreja, a pretexto de exibir um humanismo interessado pela sorte temporal
do homem, despreza a Páscoa do Senhor nos seus dois temos essências, na agonia
da Cruz, e na Ressurreição.
A
aliança que Deus nos propôs, por cujos termos toda nossa vida tem de se inserir
entre a aceitação da Cruz e a certeza da Ressurreição, faz desta vida uma
passagem, uma páscoa de valor infinito pelos seus termos extremos, sob a
condição de renunciarmos aos pequenos céus frágeis e fugazes de nossa própria
invenção. E é nesta renúncia do hoje horizontal, para uma
entrega completa ao “hodie” vertical de vida eterna em Deus, é nesta
exigência que tropeça o enorme movimento de apostasia de nossos tempos. Todos
nós, ai de nós, apegamo-nos aqui e ali a um simulacro de paraíso neste mundo,
mas não fazemos disto um sistema muito menos uma vanglória. Gememos, choramos,
pedimos perdão 70 vezes 70.
Quando,
porém, uma massa volumosa se congrega para secularizar-se, para se apegar ao
mundo com grito de triunfo e com risadas de escárnio para a Casa do Pai, então
não é só um recrudescimento de pecado o que vemos, não é mesmo uma heresia, “a
heresia do século XX” como diz Madiran, não é só uma protestantização da Igreja
isto que temos diante de uma consciência boquiaberta.
Com
a característica de somar todas as heresias, esse movimento dito “progressista”
é na verdade uma massificada e volumosa apostasia cujos fautores e cujos
carneiros só não se afastam mais decisivamente, num último assomo de lealdade,
porque hoje essa apostasia disfarçada rende muito mais do que os trinta
dinheiros com que Judas comprou a corda.
Roguemos
nós pelos irmãos na fé. Observemos bem que no Evangelho de São João, Nosso
Senhor não desaconselha nem esconde esse amor de predileção. Depois do anúncio
da traição que Jesus pronunciou com espírito aflito, Jesus se volta para
despedir-se de seus discípulos, amigos e filhos: “Filhinhos meus, ainda um
pouco de tempo estarei convosco; depois buscar-me-eis, e como disse aos judeus
também vos digo agora: aonde eu vou não podeis vir, mas agora vos digo:
trago-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei;
que vós vos ameis mutuamente. E NISTO conhecerão todos que sois meus
discípulos, se tiverdes caridade uns pelos outros”.
Os
teólogos mais tarde ensinarão que há uma hierarquia na caridade. Neste momento
de densidade infinita Jesus não hesita em dizer que seu novo mandamento
consiste num amor de coesão dentro da Igreja, e já explica que esse maior amor
dos fiéis, uns pelos outros, longe de ser detrimento para os outros, será
sinal. “In hoc cognoscent omnes qui discipuli mei estis, si dilectionem
habueritis ad invicem”. Pensando o valor deste sinal, para os outros,
Tertuliano dizia: “vede como eles se amam”.
Mas
no enxame de apóstatas que cerca a Igreja, os mais efusivos se apresentam como
os mais bondosos e mais compreensivos do que Nosso Senhor, porque não se
restringem nesse novo mandamento, e ostensivamente escolhem no mundo alheio à
Igreja seus paradigmas e seus modelos de filantropia: Gandhi, Luther King, e os
revolucionários Guevara e Camilo Torres. Na verdade, e como tão bem disse
Marcel de Corte, esse amor abstrato pela humanidade em geral, pela classe
operária, ou pelo Terceiro Mundo não passa de uma cruel falsificação do amor.
A
semana da Paixão de Nosso Senhor, além de outras lições nos aviva a vigilância
e a consciência de estarmos cercados de inimigos. Todas as formas da maldade do
mundo têm um papel na Divina Tragédia, e não é de todos que Jesus diz:
“Perdoai-os Pai, porque eles não sabem o que fazem”. Não é, portanto, para nos
amolecer, e para nos tornar mais filantrópicos do que cristãos, que a Igreja
realça a Semana Santa. É antes para lembrar o novo mandamento que nos tempera e
nos orienta o amor.
*Revista
PERMANÊNCIA, Ano VI, n° 54-55, Abril-Maio de 1973.
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