Gustavo Corção*
A vida cristã vista com os critérios do
mundo parece um disparate; e quanto mais perto seguirmos as pegadas de nosso
Salvador mais bem fundada parece a exclamação do Apóstolo: — “Escândalo para os
judeus, loucura para os gentios.”
Eis que nesta semana e especialmente os
dias da ceia e da Cruz parece concentrar-se um trágico divino que ultrapasse
todos os trágicos humanos. Na 5ª Feira Santa, efetivamente,
Jesus desvenda o mistério central de sua obra redentora. Ela será realizada por
um Sacrifício — sacrifício único mas de três modos espantosamente diversos
representados — em que Cristo Sacerdote, Verbo Incarnado, oferece ao Pai seu
próprio corpo e seu próprio sangue, isto é, oferece ao Pai o Cristo–Vítima para
a salvação dos homens.
Os três modos de apresentação do mesmo
e único sacrifício são: a Ceia, em que o Cristo, ainda em sua santa humanidade,
ele mesmo com as próprias mãos, consagra o pão e o vinho que, por um portentoso
milagre, maior do que o de toda a Criação, se transubstanciam e sob as espécies
dos sinais sensíveis, nos trazem a presença real de Cristo vítima por nós,
desde a ceia oferecido em Sacrifício sob os véus do sacramento.
Detenhamo-nos a meditar um pouco — e
que Deus nos ilumine — em certos aspectos da Ceia que merecem especial atenção.
Em artigo anterior chamamos a atenção para o caráter de obra-feita, de obra
longamente preparada, desta cerimônia que emenda solenemente o Antigo no Novo
Testamento. É em Lucas XXII, 7 a 13, que assistimos aos últimos arremates deste
cerimonial comandado pelo próprio Jesus. Não sei quantas vezes o termo ide e
preparai, preparar, preparativos, mostram bem que o espantoso desenlace no
opróbrio da Cruz em todos os seus pormenores foi comandado pelo artífice de
nossa salvação. E é em Lucas XXII, 14 e 15, que chegamos à cena que
dificilmente um coração católico pode evocar sem profunda compunção e sem um
ardente desejo de voar ao encontro daquele ardente desejo que Jesus agora
anuncia: — «Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa». Começa
nesse ardente desejo a Paixão de nosso Salvador. Na Cruz, como tantos autores
espirituais o assinalam, Jesus repete, no extremo desconforto de uma dor
inimaginável, a mesma sede de almas, concentrado naquele grito que a Sagrada
Liturgia expressa na palavra; — Sitio.
Uma nota se impõe à nossa atenção à
medida que a cena da Divina tragédia se desenrola naquele cenário
cuidadosamente escolhido para a solenidade. Naquele tempo Jesus já era bem
conhecido e já contava centenas de seguidores mais ou menos assíduos. No
Domingo anterior fora aclamado pelo povo de Jerusalém: “Hosana! Bendito aquele
que vem em nome do Senhor! Rei de Israel!”(Jo XII, 13 a 21). As expressões «muitos
estenderam seus mantos» sugerem uma apreciável multidão. Ora, naquele
instante máximo Jesus fez questão de estar só com os doze como que para mais
condensar, e até ouso dizer, para melhor segredar o mistério sagrado da vida
profana. Deste arcano e desta segregação resultaria uma maior firmeza nuclear
no centro da Igreja. E se essas reflexões são realmente irrefutáveis,
concluímos aflitos que as infelizes reformas litúrgicas, especialmente no que
concernem à Santa Missa, exibem um espírito que dificilmente se coaduna com o
que nos enche a alma diante da ceia.
Fugindo à idéia de Sacrifício, pouco
aceitável na ONU, e procurando maior apoio na Ceia, os autores do novo missal,
no infeliz Ponto 7 do Institutio Generalis apresentam a missa
como essencialmente constituída «pela assembléia dos fiéis».
Por onde se vê que o extravio provocado
pelo horror à Cruz, espantalho dos humanistas, em vão buscará apoio na Ceia.
Exageradamente errado o famoso ponto 7 de Monsenhor Bugnini, não sendo apenas
um erro material isolado, mesmo depois das serziduras e remendos, continua a
bem revelar o novo espírito que alegrou Taizé e que na capa de Documentations
Catholiques provocou a tenebrosa hilaridade comentada pela revista Itinéraires
(n˚ 178 – Dez. 73).
Neste ponto apareceu-me o fantasma de
um leitor a me reclamar o que lhe soa como uma impiedade imperdoável:
aproveitar a Quinta-feira Santa para referências e comentários polêmicos.
Ora, caríssimos leitores, se o que até
aqui disse provocou espanto, o que agora acrescentarei ainda mais estranho
parecerá: a Quinta-feira Santa é, de todos os dias do ano, o dia mais indicado
e mais propício para um artigo polêmico não somente em defesa da Santa Missa
mas na denúncia dos traidores. Atrás insisti na idéia de uma esmerada
preparação feita pelo próprio Senhor Jesus para a consumação de toda a
dramaturgia de nossa salvação. Ora, entre as cenas preparadas pelo divino
dramaturgo nós trememos diante desta obra-prima: «...Tendo assim falado,
Jesus se perturbou no seu espírito e declarou em voz clara: — Em verdade em
verdade vos digo um de vós me trairá. Ouvindo essas palavras, os discípulos se
entreolharam sem saber de quem falava Jesus. Então, aquele discípulo que Jesus
amava achava-se encostado em seu ombro; Simão-Pedro fez-lhe então um sinal e
lhe disse: — Pergunte-lhe de quem fala. E João dirigindo-se a Jesus: — Senhor,
quem é? Jesus respondeu: — É aquele a quem darei o pedaço de pão que vou molhar
no vinho. Tomando pois o pedaço de pão molhado deu-o a Judas, filho de Simão
Iscariotes. Tendo Judas recebido o pão, Satã entrou em sua alma. E Jesus lhe
disse: — O que tens a fazer faze-o logo. (...) Em seguida Judas saiu.
Anoitecera».
Este quadro em que Jesus formula uma
denúncia que deve ter sido prevista na sua esmerada preparação e em que entra
em cena o próprio Satã vem confirmar os seguidores de Cristo nesta ousada idéia
de que não há dia mais oportuno para defesa polêmica das coisas santas e
denúncia dos traidores.
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O
GLOBO, quinta-feira, 15/4/76
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