Gustavo Corção*
Não há em todo o ano
litúrgico, que é o vôo circular em que a Igreja contempla amorosamente os
mistérios de Cristo, momento mais jubiloso e mais belo em que, antes de acender
o Círio Pascal, o Diácono canta o “Exultet
Jam Angélica Turba Caelorum...” que é, sem dúvida alguma, o maior primor
que os homens, com inspiração divina e engenho próprio jamais lograram compor
em toda a história do cristianismo e do mundo. Quem já adulto, e já
doloridamente vivido, teve a felicidade de ouvi-lo pela primeira vez no
esplendor do Movimento Litúrgico, pôde apreciar, nessa adamantina condensação,
todo o apuro, todo o requinte de infinito bom-gosto que a Igreja, ex abundantia operis, trouxe à
civilização, e até hoje guarda a lembrança do estremecimento da alegria que
nessa noite sentiu como antecipação de todas as promessas de Deus:
O
vere beata nox, quae sola meruit scire tempus et horam in qua Christus ab
inferis ressurrexit! – Ó bem-aventurada noite, única que mereceu conhecer o dia
e a hora em que Cristo ressuscitou dos mortos.
Inebriada de alegria
a Igreja delira, e chega à amorosa inconveniência, à desmedida loucura de
cantar:
O
certe necessarium Adae peccatum... O felix culpa... – Ó necessário pecado de
Adão...Ó culpa feliz.
E depois, agora mais
senhora de si, gravemente repete a grande história do Verbo de Deus desde a
madrugada da Criação, desde a promessa feita a Abraão, e através das palavras
dos profetas até aquela outra madrugada do primeiro dia da semana em que Maria
Madalena e a outra Maria vieram visitar o sepulcro.
Maria Madalena e
Maria, mãe de Tiago e Salomé, haviam comprado aromas para embalsamá-Lo, e pelo
caminho diziam: “Quem nos levantará a
pedra do sepulcro?”
Chegadas, viram a
pedra rolada, e então as duas mulheres voltaram correndo para anunciar aos
apóstolos o que viram e ouviram do anjo que estava ao lado do sepulcro: Ele
ressuscitou!
E daí em diante
começaram as páginas mais transluminosas, e mais banhadas de alegria das
Sagradas Escrituras. Cada quadro tem uma luz suave e mais penetrante do que
todo o alvorecer da Criação.
Agora num relâmpago,
vemos Maria Madalena voltar-se para o vulto que julgava ser o do jardineiro, e
com ela ouvimos:
- Maria! E logo a
resposta de adoração: - Raboni!
Mais adiante é no
Cenáculo, onde estavam fechados e tristes os apóstolos, que Jesus ressuscitado
aparece e lhes diz: “A paz seja
convosco.” E agora é na estrada de Emaús que dois discípulos caminham
conversando a respeito de tudo o que havia acontecido, e à certa altura
percebem que alguém caminha com eles, e lhes pergunta: “De que falais enquanto caminhais?” Os viandantes ficaram tristes,
e o que se chamava Cleofas respondeu ao desconhecido: “Serás tu, forasteiro em Jerusalém, o único a ignorar o que se passou
nestes dias?” “O que aconteceu?”, perguntou o desconhecido. E os peregrinos
contaram a história de Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras
diante de Deus, que os príncipes dos sacerdotes e magistrados entregaram para
ser condenado à morte, e morte de cruz; e disseram que estavam tristes porque
esperavam que ele libertasse Israel, e agora já três dias passaram... É verdade
que algumas mulheres, que se achavam conosco, dizem que seu corpo desapareceu
do sepulcro e que um anjo anunciou que Ele estava vivo! Mas eles ainda
duvidavam...
Disse-lhes então o
desconhecido: “Ó homens sem inteligência,
como tarda vosso coração em crer o que os Profetas anunciaram!” E começando
por Moisés, percorrendo todos os Profetas, o desconhecido ia explicando as
palavras de Deus à medida que se aproximava de Emaús. O desconhecido deu a
entender que tomava outro caminho, mas a pedido dos peregrinos entrou com eles
num albergue. “Fica conosco!” pediam
os peregrinos, e Jesus, com eles à mesa, tomou o pão, benzeu-o, partiu-o, e
deu-lhes, e então seus olhos se abriram, mas Jesus desaparecera.
Esta pequena história
que resiste a todos os maltratos da humana grosseria, tem inspirado e animado o
engenho de todas as artes humanas, e poderá ainda, até o fim do mundo, ser
cantada, contada, pintada e lavrada sem que a infinita profundidade de sua
beleza venha a se exaurir. Por mim, neste momento, sinto com especial comoção a
beleza da ação de graças dos dois peregrinos quando retomam a caminhar: — “Lembras-te como nosso coração se abrasava
quando Ele, no caminho, nos explicava as Escrituras?”.
Peçamos nós a esses
santos peregrinos que nos obtenham de Deus a mesma graça de sentir arder o
coração quando ouvirmos a voz de Cristo na voz da Igreja a nos explicar os
formidáveis mistérios da Pátria.
Diz-nos São Paulo na
Vigília Pascal: “Se morrermos com Cristo,
com Ele ressuscitaremos e viveremos". Mas nosso tardo coração sente-se
amedrontado diante de tão excessiva promessa de Deus.
Na verdade, na
verdade, todos os dons de Deus e todas as suas promessas são excessivas, e
tamanho clarão de mistério às vezes mais nos ofusca e nos cega do que nos
ilumina. “Creio... na ressurreição da
carne...” balbucio eu envolvendo este artigo no mesmo global ato de fé que
tem sua razão de ser na Palavra de Deus. Balbucio e tremo quando considero esta
pobre carne já tão desgastada, “comme um
vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin” – como um velho
carneiro que perdeu sua lã nos espinhos do caminho. Como poderá resplender e
reflorescer este pobre corpo já tão próximo do desmoronamento total?
Afina teu ouvido, ó
tardo coração, e pondera que nesta Vigília Pascal, por sua Igreja, Cristo nos
rememora todas as grandezas de Deus desde a criação até esse momento único em
que a chama do Círio representa a grande transição, a maravilhosa travessia, a
Páscoa que nos transporta de um desastrado mundo para o mundo dos
ressuscitados. E pondera bem, alma de minh’alma, que um só ato vivificado pela
graça de Cristo é maior do que todas as galáxias; e que as vezes que do pecado
saíste por um ato de contrição e pelo perdão sacramental somam maior total de
maravilhas do que todo o Universo criado. Na verdade, na verdade tu te deténs
demais na excessiva promessa anunciada pelo Exultet
porque ainda te agarras demais à idéia de que teu corpo com sua variedade de
órgãos e funções, é a maior maravilha de teu ser. No que te enganas demais,
alma de minha alma, porque a maior maravilha de meu ser é a graça da adoção, é
o favor sobrenatural que Deus nos concede: o de podermos chamá-lo de Pai
Nosso...
E nessa ordem de
coisas, que importa infinitamente mais do que todas as estrelas do céu, todas
as flores da terra e todos os peixes do mar, nessa ordem nova ou nessa nova
criação – tudo é graça.
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